quinta-feira, 29 de abril de 2010

Gigante

Eu menti. Me chamo Amélia. Mas poderiam me chamar Angélica, ou Maria, ou Joaquina, ou Antônia, ou até mesmo Zoraide, o nome não importa. E se José fosse o nome escolhido, será que ainda assim não importaria? De que adianta pensar nisso agora? Já me peguei com essa pergunta atravessada inúmeras vezes, mas a resposta tem sido sempre a mesma (para saber como seria se me chamasse Maria, só me chamando Maria) e isso me irrita. Não me servem de nada as divagações porque vivo presa num fato que é irrefutável: Amélia. Quando me chamam de Amélia, meu corpo responde automaticamente, identifica o som que é ligado pelo meu cérebro instantaneamente à imagem: eu. O fato de me chamarem Amélia me define. A ideia do definitivo me assusta. Responder por Amélia significa agir como tal.

Hoje ela chorou por colo.
Ela só queria encostar.

Era amor grande demais.
Imenso.
Gigante.
Amor grande daquele,
só podia caber dentro dela.
E só ela aguentaria a dor
de ver grande amor daquele,
gigante,
imenso,
virando pó.

Ela continua pagando pra ver o invisível.

[Meu médico me receitou champanhe gelado.
E gelo nas têmporas.]

Ela gostaria de não ter se esquecido das cores e das coisas.
Ela não tinha pé, perdeu a mão e saiu meio sem nada.
Saiu de casa procurando a solidão como quem procura alguém.
Saiu cantando um trechinho de uma música sem melodia.
(...) um sucesso de um fracasso
um osso dando um passo
rumo ao amor
mais falso
do mundo (...)

Tinha um sol inteiro pra ela.

Como se puni quem não se arrepende? - Ela pensava.

Mesmo quando foge de casa, Amélia volta pra arrumar a bagunça que deixou pra trás.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Noite de festa

(...)

"Maravilhosos! Maravilhosos seres humanos! Espiritualizados e maravilhosos!"
"Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary?"
"Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles."
"As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo que vão queimando enquanto voam - queimando, não pensando."
"Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui está Shelley - aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas descerem como pára-quedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando cair sua chuva de florações em forma de estrelas."
"Quer que eu lhe cite Shelley? 'Vamos! faz escuro no matagal sob a lua...'"
"Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo."

(...)

"Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado."
"Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a essa respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento."
"Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de admitir que gosta mais das pessoas descontentes."

(...)

"(...) o tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a..."
"Aos mortos."
"Detecto ironia na sua correção."
"Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir, enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres."

(...)

"As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas? Sozinha comigo?"

Virginia Woolf

domingo, 25 de abril de 2010

O misterioso caso de miss V.

É um lugar-comum que não há solidão que se compare à de quem se vê sozinho numa multidão; romancistas o repetem; é inegável que comove; e agora, depois do caso de miss V., eu ao menos passei a dar-lhe crédito. Uma história como a dela e a irmã - mas é típico que, ao se escrever sobre elas, um nome pareça instintivamente servir às duas; pois pode-se mencionar de um só fôlego, com efeito, um monte de irmãs assim. Tal havido o açougueiro ou o carteiro ou a mulher do pastor; mas numa cidade altamente civilizada as amabilidades da vida humana se estreitam no menor espaço possível. O açougueiro larga sua carne pela área; e o carteiro enfia sua carta na caixa, sendo sabido que a mulher do pastor já atirou as missivas pastorais pela mesma brecha tão cômoda: todos ele repetem que não têm tempo a perder. Assim, ainda que não se coma a carne, que as cartas fiquem por ler e que os comentários pastorais sejam desobedecidos, ninguém se torna mais sensato; até que chega um dia em que esses funcionários tacitamente concluem que o número 16 ou 23 não precisa mais de atendimento. Em suas rotinas, eles então passam ao largo, e a pobre miss J. ou miss V. fica de fora dessa malha fechada da vida humana; e é deixada por todos e para sempre ao largo.
A facilidade com que um tal destino lhe ocorre sugere que realmente é preciso fazer valer seus direitos para impedir que você mesmo seja mantido à parte; como lhe seria possível vir à vida de novo, se o açougueiro, o carteiro e o guarda decidissem ignorá-lo? É um destino terrível; e acho que neste exato momento vou bater de encontrão numa cadeira; o inquilino de baixo agora sabe que, seja como for, eu estou viva.
Mas, voltando ao misterioso caso de miss V., entenda-se que em sua inicial também se oculta a pessoa de miss Janet V.: nem chega a ser necessário dividir uma letra em duas partes.
Durante uns quinze anos elas andaram circulando por Londres; podia-se encontrá-las em certas salas de visitas ou em galerias de arte e, se você lhe dissesse, "Oh, miss V., como tem passado?", como se estivesse acostumado a encontrá-la todos os dias, ela responderia, "Que dia lindo, não é?", ou "Tem feito muito mau tempo", e então você iria em frente e ela pareceria fundir-se a uma poltrona ou uma cômoda. De qualquer modo, você não pensaria mais nela enquanto ela não desgrudasse do móvel, no curso talvez de um ano, e as mesmas coisas viessem a ser ditas de novo.
Um vínculo de sangue - ou do fluido que porventura circulasse nas veias de miss V. - fez com que meu destino particular fosse dar com ela - ou passar por ela ou dissipá-la, seja lá como puder ser a frase - mais constantemente talvez do que qualquer outra pessoa, até que essa pequena performance se tornou quase um hábito. Nenhuma festa ou concerto ou galeria parecia estar completa se a familiar sombra cinzenta não fizesse parte do todo; e quando, não faz muito tempo, ela cessou de estar sempre no meu caminho, vagamente entendi que havia alguma coisa faltando. Não vou exagerar e dizer que entendi que o que faltava era ela; mas não há insinceridade em usar o termo neutro.
Numa sala apinhada, comecei assim a me ver olhando em torno, num descontentamento inominável; bem, todo mundo parecia estar ali - mas por certo faltava alguma coisa nos móveis, nas cortinas - ou seria uma gravura que tinha sido tirada da parede?
Aí, uma manhã bem cedo, despertando de fato ao raiar do dia, gritei bem alto, Mary V., Mary V.!! Foi a primeira vez, estou certa de que ninguém nunca havia gritado seu nome com tal convicção; em geral ele parecia um epíteto incolor, usado simplesmente para arredondar um período. Mas minha voz não interpelou à minha presença, como eu em parte esperava, a pessoa ou parecença de miss V.: o quarto permanecia obscuro. Meu próprio grito ecoou-me o dia todo no cérebro; até eu ter a certeza de que na esquina de uma rua qualquer eu me encontraria como de costume com ela, dando-me satisfeita ao vê-la sumir ao longe. Contudo ela não apareceu; e creio que fiquei desapontada. De qualquer modo veio-me à cabeça, quando de noite me mantive acordada, o inesperado plano fantástico, a princípio um mero capricho, que aos poucos se tornou sério e perturbador, de que eu iria em pessoa visitar Mary V.
Quão louco e estranho e divertido parecia tal plano, na hora em que eu pensava nele! - seguir os passos da sombra, ver onde é que ela vivia, se é que vivia mesmo, e conversar com ela como se fosse uma pessoa igual ao resto de nós!
Pense só quão singular pareceria tomar um ônibus para ir visitar a sombra de uma campanulácea em Kew Gardens, quando o sol se acha a meio caminho céu abaixo! ou pegar nos pêlos de um dente-de-leão! à meia-noite numa campina de Surrey. No entanto a expedição a que eu me propunha era muito mais fantástica do que qualquer uma dessas; e, enquanto eu me vestia para sair, dei não poucas risadas ao pensar quão substanciais preparativos eram necessários para a minha tarefa. Chapéu e botas para Mary V.! Parecia incrivelmente inadequado.
Por fim cheguei ao apartamento onde ela morava e constatei que a placa na entrada, quando a olhei, indicava ambiguamente - igual ao resto de nós - que ela tanto estava lá quanto fora. À sua porta, bem no último andar do prédio alto, toquei a campanhia e bati, esperei e sondei; ninguém atendia; e eu já começava a me perguntar se as sombras morrem, e como poderiam ser enterradas, quando veio uma criada gentil abrir a porta. Mary V. tinha estado doente por dois meses; morrera ontem de manhã, na mesma hora em que eu gritara seu nome. Nunca mais, assim, hei de encontrar sua sombra.

Virginia Woolf