sábado, 8 de maio de 2010

Por Holden Caulfield

Depois que acabou o negócio do Natal começou a porcaria da fita. Era tão ruim que eu nem pude despregar os olhos da tela. Era sobre um camarada inglês, Alec qualquer coisa, que vai para a guerra e perde a memória no hospital e tudo. Depois sai do hospital de bengala e mancando por tudo quanto é lado, por Londres toda, sem saber quem é ou onde está. Na verdade, ele é um duque, mas não sabe de nada. Aí encontra num ônibus uma garota boazinha, caseira e sincera pra chuchu. A droga do chapéu dela cai e ele apanha e, depois que sobem, começam a conversar sobre Charles Dickens. É o escritor predileto dos dois e tudo. Ele está com o "Oliver Twist" debaixo do braço e ela também. Quase vomitei. De qualquer forma, se apaixonam de estalo, só porque os dois são tarados pelo Charles Dickens, e ele vai ajudá-la a dirigir uma editora. A moça é editora. Só que o negócio não está indo bem, porque o irmão dela é porrista e mete o pau no dinheiro todo. Era um camarada amargo pra diabo, o irmão; ele era médico, mas depois da guerra não podia mais operar porque ficou com os nervos em pandarecos. Por isso vivia enchendo a cara, mas era muito espirituoso e tudo mais. Seja como for, o tal do Alec escreve um livro, a moça publica e os dois ganham um caminhão de dinheiro. Estão com tudo pronto pra casar, quando aí aparece uma tal de Márcia. A Márcia era noiva do Alec antes dele perder a memória, e o reconhece quando ele está na loja autografando o livro. Ela diz ao Alec que ele é Duque, mas ele não acredita e não quer ir com ela visitar a mãe dele e tudo. A velhinha é cega como um morcego. Mas a outra garota, que é muito mais simples, manda ele ir. Ela é muito altruísta e tudo mais. Aí ele vai. Mas nem assim recupera a memória, nem quando o cachorro dinamarquês pula em cima dele, e a mãe passa os dedos pelo rosto dele todo e traz o ursinho que ele carregava para todo lado quando era menino. Então, um dia, uns garotos estão jogando críquete no parque e ele leva uma bolada na cabeça. Aí, na mesma hora, ele recupera a droga da memória e vai lá dentro beijar a testa da mãe e tudo. E começa a ser um duque normal, e se esquece da garota boazinha que tem a editora. Eu podia contar o resto da estória, se não me desse tanta vontade de vomitar. Não que eu fosse estragar o filme para ninguém nem nada. No duro, não há o que estragar. De qualquer forma, acaba com o Alec e a garota boazinha se casando, e o irmão que é porrista fica bom dos nervos e opera a mãe do Alec, restituindo-lhe a visão, e aí o irmão beberrão e a Márcia se apaixonam. Termina todo mundo numa baita mesa de jantar, rindo como uns idiotas porque o dinamarquês entra com uma ninhada de cachorrinhos. Acho que todo mundo pensava que o cachorro era macho ou qualquer droga parecida. Só sei dizer que, quem não quiser vomitar até morrer, não deve nem entrar no cinema quando estiver passando essa fita.

O apanhador no campo de centeio
J. D. Salinger

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Um poema para a velha dente-podre

Conheço uma mulher
que segue comprando quebra-cabeças
quebra-cabeças
chineses
blocos
arames
peças que finalmente se encaixam
numa espécie de ordem.
Ela se dedica à questão
de modo matemático
resolve todos os seus
quebra-cabeças
vive perto do mar
põe açúcar para as formigas lá fora
e acredita
definitivamente
num mundo melhor.
Seu cabelo é branco
raramente o penteia
seus dentes são podres
e ela veste macacões frouxos
e amorfos sobre um corpo que a maioria
das mulheres desejaria ter.
Ao longo de muitos anos ela me irritou
com o que eu considerava suas
excentricidades:
como mergulhar conchas na água
(para que ao regar as plantas elas
recebessem cálcio).
Mas finalmente quando penso na sua
vida
e comparo a outras vidas
mais deslumbrantes, originais
e belas
percebo que ela machucou menos
gente do que qualquer outra pessoa que conheço
(e com machucar quero dizer simplesmente machucar).
Ela enfrentou alguns momentos terríveis,
momentos em que talvez eu devesse tê-la
ajudado mais
porque era a mãe da minha única
filha
e uma vez fôramos grandes amantes,
mas ela havia superado essas dificuldades
como eu disse
das pessoas que conheço ela foi a que machucou
menos gente,
e se você olhar pra isso pelo que isso significa,
bem,
ela criou um mundo melhor.
ela venceu.

Frances, este poema é pra você.

Charles Bukowski