quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tudo acaba na estreia

O teatro! Dessa experiência, todavia, ele, meio tímido, pouco dado a se socializar, extrai principalmente a maneira com que o obriga a se abrir para o mundo, a necessidade - em seu caso, absolutamente inédita - de submeter seu trabalho à opinião, às ideias, ao gosto dos outros, e eventualmente de corrigi-lo se sua tradução, por mais perfeita que soe no papel, assim que sai da máquina, na boca dos atores, como mais de uma vez fica evidente nos ensaios, deixa a desejar ou se mostra pura e simplesmente impronunciável. Acostumado a trabalhar sozinho, a ser seu próprio patrão e a não ter sócios, tem dificuldade em confiar no tipo de sociabilidade que o teatro alardeia, ao mesmo tempo incondicional e cheia de caprichos, que, assim como nasce de maneira estrepitosa na apresentação oficial do elenco, floresce com a chamada leitura do texto, os ensaios, as provas de figurino, as rivalidades, a paquera indiscriminada, consolida-se com imensos espaços de tempo desperdiçados em esperas, atrasos, crises de choro nos camarins, reuniões nos cafés dos arredores do teatro, e chega ao auge absoluto com a estreia, assim também não demora a se dissipar com as primeiras apresentações, como se toda essa articulada estrutura social só tivesse sido levantada para fazer frente às exigências extremas da estreia, e acaba por se esfumar poucas semanas depois, quando a obra sai de cartaz e os mesmos que um mês atrás teriam dado a vida por qualquer outro membro do elenco agora se afastam, cada um para seu lado, numa debandada triste, sem som, em busca de um novo contrato de trabalho. Mesmo assim, ele - guardadas as proporções, lógico, porque também não é o caso de ficar dando murro em ponta de faca - adere a essa instável fraternidade com entusiasmo, como quem abraça um tratamento médico cuja eficácia é estritamente proporcional aos sacrifícios que demanda. Adere mesmo quando se expõe às inclemências para as quais está menos preparado: por exemplo, superar uma timidez doentia e conversar com uma atriz que está vendo pela primeira vez na vida, que lhe agrada (embora meses possam se passar antes que ele reconheça isso) e que de repente, sem nenhum aviso, enquanto rói com pudor o debrum brilhante de uma das asinhas do traje que lhe coube em sorteio, pergunta se já lhe aconteceu de uma fada de um bosque dos arredores de Atenas se oferecer para chupar seu pau no banheiro de um camarim de teatro; ou, como acontece numa tarde que ele jamais vai esquecer, que semanas depois continua a deixá-lo vermelho de vergonha, não importa onde o assalte a lembrança, isto: ter de atravessar na presença de todo o elenco o vasto tablado da sala de ensaio, vestido com sua calça de veludinho cotelê, sua camisa listada, seu colete de lã e sua suscetibilidade, sinais de um retraimento, um apego à convenção e um "medo do corpo" - como ouve depois, enquanto foge escadas abaixo, alguém comentando em voz baixa - nos quais jamais lhe ocorreria pensar, de tanto que fazem parte de sua natureza, se não fosse confrontado pelo sarcasmo com que os atores o olham - eles, que não estão vivos se não têm alguém olhando para eles - e por sua própria imagem, desamparada e hesitante, refletida no espelho que ocupa de ponta a ponta toda a parede mais extensa da sala.

Extrai da experiência a efervescência social, a excitação, a paixão de depender dos outros, de emprestar meias, sapatilhas de dança, maquiagem, absorventes, e mesmo a compulsão dos atores de se beijar e se abraçar por qualquer motivo, muito mais própria de ex-colegas de uma viagem de formatura ou de sobreviventes de uma catástrofe aérea do que de gente acostumada a ver a cara um do outro dia sim dia não no palco de um teatro, num curso de clown ou num daqueles restaurantes do centro da cidade que ficam abertos até altas horas. Extrai, enfim, tudo aquilo que o contradiz e o tira de si, de sua introspecção, mesmo correndo o risco de incomodá-lo ou, como acaba acntecendo, de lhe fazer jurar em segredo que nem todo o ouro do mundo o convencerá outra vez a escrever uma linha que seja para o teatro.

História do cabelo
Alan Pauls

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Quero saber

Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar
por fim, não introduzir mercadorias
como o faziam os colonizadores
trocando baralhinhos por silêncio.
Pago eu aqui por teu silêncio.
De acordo, eu te dou o meu
com uma condição: não nos compreender.

Pablo Neruda

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Delicatessen

Delicatéssen: 1 iguarias finas, petiscos; 2 casa comercial em que se vendem estas iguarias. - Significado encontrado no Dicionário Houaiss da língua portuguesa.


Apesar do significado de seu título, o filme de Jean-Pierre Jeunet (mesmo diretor de O fabuloso destino de Amélie Poulain, 2001) em parceria com Marc Caro não fala de culinária, gastronomia ou qualquer atividade que envolvesse comida, simplesmente. Na capa do filme vê-se uma imagem de um porco num fundo laranja-quente e a seguinte frase: “Uma comédia diferente de todas que você já viu.”, e esta diz a mais pura verdade – se é uma comédia, definitivamente o público não rirá de piadas convencionais. O fato é que ao assisti-lo, Delicatessen se apresenta como uma junção de diversos gêneros, entre eles a comédia de humor negro, o romance, o drama e, se observarmos sob diferentes perspectivas, o filme se filia também ao gênero político-social, pela maneira como retrata os limites das relações entre pessoas de uma comunidade onde a comida é escassa.

Louison, o protagonista, é um ex-palhaço de circo atraído por um anúncio de emprego no jornal por suas habilidades em serviços gerais de manutenção para um edifício inóspito e decadente. Neste, moram alguns destes personagens cujas fisionomias ridículas e desesperadas ajudam a concretizar a bizarrice do ambiente como, por exemplo, o açougueiro assassino e principal responsável pela distribuição de comida; Julie, sua filha míope; Aurore, uma senhora obcecada pelo suicídio que nunca consegue efetivá-lo; Marcel, um pai de família desempregado, entre outros. O que Louison vai descobrir no decorrer do filme é que seu destino é virar refeição para os moradores do prédio, com excessão de Julie, seu par romântico na trama, que ajuda o palhaço a escapar das armadilhas de seu pai e dos outros habitantes da pensão para capturá-lo.

Mais a frente da própria construção dos personagens, muito bem trabalhada nos detalhes, foram usadas técnicas para distorcê-los, alterando seu tamanho real. Como exemplo estão as cenas onde o açougueiro aparece e este se encontra bem maior que os outros personagens também presentes.

Lançado em 1991, o primeiro longa da dupla de diretores franceses nos introduz num universo fantástico onde o tempo e o espaço numa dimensão macro (cidade) em que se passa não é conhecido. A escala de cores vai desde o amarelo queimado até o vermelho mais fechado com certo brilho dourado que perpassa todo filme dando uma leve sensação de sonho; independente do que aconteça e, independente do quão surpreendentes sejam estes fatos, vamos todos, em breve, acordar.

Além das cores quentes que logo nos remetem ao sujo, velho e enferrujado, a cenografia carregada de uma mistura de expressionismo alemão, por conta de suas linhas retas e sombras exageradas, com aquele velho estilo francês – e por estilo francês eu, leiga no assunto, quero dizer tudo aquilo em que reconheço o estilo de vida Amélie Poulain e, neste caso, em muitas cenas – de montar uma casa com móveis antigos e vestir os personagens com roupas de brechó diferenciam, num ótimo sentido, esta direção de arte das que o público brasileiro em geral é acostumado a ver nos cinemas. A televisão, que a todo tempo transmite imagens mais antigas do que a imagem do filme em si, deixa claro o contraste entre dois mundos: o presente e o que não existe mais, rompendo a coerência da ambientação e, assim, mostrando a relação tempo-espaço cada vez mais peculiar aos olhos do espectador.

Ao contrário do que os poucos diálogos do roteiro de Jeunet, Caro e Gilles Adrien sugerem, Delicatessen não é um filme silencioso, pelo menos não em minha opinião. Colocando em voga a expressividade cênica do longa, qualquer ruído, barulho ou som ganha destaque em cena e se transforma em música, isso quando não atravessa a linha imaginária entre trilha sonora e dramaturgia e acaba por se transformar em fio condutor da narrativa. É impossível não reconhecer a importância da música original de Carlos D’Alessio na construção de um ambiente esquisito, bizarro, engraçado, apaixonante e primordialmente denso.

A cinematografia de Darius Khondji e a montagem de Herve Schneid em conjunção com um roteiro inteligente e ótimas atuações mostram que, no cinema, nem todo espaço precisa ser dimensionado, nem todo tempo preciso ser contado, e toda estória, por mais surreal que pareça, pode construir sua lógica e sentido próprios com muita eficácia.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

To Jordana Bevan

Dear Jordana,

thank you for letting me explore your perfect body.
I could drink your blood, you are the only person that I would allow to be shrunken down to a microscopic size and swim inside me in a tiny submersible machine.
We have lost our virginity but it wasn’t like losing anything.

You are too good for me, you are too good for anyone.

Sincerely, Oliver.

Submarine
Joe Dunthorne

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Heart is a lonely hunter

I was thinking of you. And I was thinking of you.

And I was thinking of you.

And then I wasn't thinking of you anymore.


Este trecho não foi retirado do livro referente ao título. Não sei de onde foi tirado; eu copiei de uma amiga. Porque é assim que acontece comigo. E se perguntarem "é assim?", não se assustem, mas eu vou responder "é". A propósito, eu também não li o livro, só gostei muito do título.

domingo, 16 de outubro de 2011

Domingo de mudança

Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz. Vai ficar tudo bem. Eu quero muito ser feliz.

sábado, 8 de outubro de 2011

Ontem nós tivemos uma daquelas brigas de novo. No final de tudo, já pelas duas e pouco da madrugada, você chorava muito e eu, como sempre, sentia uma culpa mais forte que todo meu amor, até mesmo que toda a minha tristeza. Por outro lado, eu estava preocupada comigo por ter me sentido culpada, afinal de contas aquela briga era necessária, eu tinha os meus motivos e, obviamente, você tinha os seus. Durante muito tempo da minha vida eu radicalizei todas as atitudes e transformei pequenos mal-entendidos em grandes monstros. Se eu estava satisfeita assim? Claro que não. No meu mais profundo, a minha inquietação vibrava como uma bomba. Eu decidi vestir a Clara que ainda não tinha aparecido; me coloquei no lugar das outras pessoas, percebi os meus erros e desvendei alguns perigos. Agora, tudo está absolutamente equivocado. Eu não devia estar com você; você não devia estar comigo. Eu não quero curar mais ninguém. A minha força se esvaiu quando me compadeci. Porque é assim que eu sou, ou uma, ou outra. Ou sou forte e cuido de mim, ou tenho compaixão e morro de inanição. Hoje estou escrevendo porque eu desisti de buscar aquilo que dizem ser o meu futuro, de ser aquela que você espera que eu seja. Me conquiste da próxima vez. Me diga que me quer e vai fazer acontecer, ou que você não me quer e não vai mexer uma palha. Me abrace forte, me beije e diga que eu sou a mulher da sua vida, ou então me mande embora logo de uma vez. Tome responsabilidade por alguma coisa. É preciso entender que o que faz do amor amor, é a luta por ele.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Retrato III

E a mim que ali me sentava, no pátio da Pousada Francesa, pareceu que o segredo da existência nada era senão um esqueleto de morcego no armário; e que nada era o enigma senão o entrecruzamento de uma teia de aranha; tão sólida ela parecia ser. Ela estava no sol, sentada. Não usava chapéu. A luz a fixava. Não havia sombra. Seu rosto era amarelo e vermelho; e arredondado; uma fruta num corpo; outra maçã, só que não no prato. Seios que se formaram no seu corpo com a dureza de maçãs sob a blusa.

Eu a observava. Sua pele vibrou como se uma mosca tivesse andado nela. Alguém passou; vi as folhas estreitas das macieiras tremerem vibradas por seu olhar. Sua rudeza, sua crueldade, era como casca grossa com líquen, e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida.

Virginia Woolf

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Cena I: Franny perde o apetite.

- Como vai a peça? - perguntou Lane, ocupado com os caracóis.
- Não sei. Não vou trabalhar nela. Desisti.
- Desistiu? - Lane levantou os olhos do prato, surpreendido.
- Eu supunha que você andava louca com o seu papel. Que aconteceu? Deram o papel a outra?
- Não, nada disso. O papel era meu. Oh, uma chatice, uma verdadeira chatice.
- Mas então o que foi que aconteceu? Não me diga que largou o curso de teatro, largou?

Franny fez que sim com a cabeça, enquanto bebia um gole de leite.

Lane esperou que ela tivesse acabado de mastigar e de beber.

- Mas, pelo amor de Deus - disse ele então - explica por quê! Eu achava que o maldito teatro era a tua paixão. Você quase não sabia falar de outra coisa...
- Larguei tudo e pronto! O negócio já estava ficando chato. Comecei a me sentir como uma egomaníaca -. Refletiu uns instantes. - Não sei bem explicar. Acho que era de um certo mau-gosto querer trabalhar em teatro em primeiro lugar. Refiro-me à presença do ego no teatro. E detestava a mim própria, quando estava em cena e, depois, terminada a peça, ter que ir para os bastidores. Todos aqueles egos correndo afobados de um lado para o outro, e mostrando-se terrivelmente generosos e entusiásticos. Beijando todo o mundo e usando maquilagem por tudo quanto é lado, e tentar parecer terrivelmente natural e simpática quando os amigos vêm nos ver nos bastidores. Puxa, como eu me detestava nessas alturas! E o pior de tudo é que eu sentia uma espécie de vergonha por entrar nessas peças... Especialmente as do repertorio de verão -. Encarou Lane. - E eu tinha sempre bons papéis, não há razão para que você olhe pra mim desse jeito! A questão não era essa. Era, simplesmente, que eu sentiria uma vergonha terrível se, por exemplo, alguém a quem eu respeito... os meus irmãos, por exemplo... entrasse no teatro e me ouvisse recitando algumas das linhas que eu tinha de dizer. Eu costumava escrever a algumas pessoas e pedir-lhes que não fossem me ver.

Refletiu por mais alguns instantes e continuou:

- Exceto no papel de Pegeen, em Playboy, que representei no verão passado. Quer dizer, poderia ter sido espetacular mesmo, se o canastrão que fazia o playboy não estragasse tudo. Oh, meu Deus, como ele era lírico! Nunca vi um sujeito mais meloso!

Lane terminara seus caracóis. Estava imóvel, olhando para ela deliberadamente sem expressão.

- Mas ele teve boas críticas. Eu me lembro perfeitamente, você até me mandou recortes.

Franny suspirou.

- Está bem, Lane. Não vamos discutir isso, tá?
- Não. Mas uma coisa tenho de dizer, Franny. Você esteve falando quase meia hora como se fosse a única pessoa do mundo que tem bom-senso, que tem alguma capacidade crítica. Quer dizer, se alguns dos nossos melhores críticos acharam que o sujeito ia bem na peça, talvez seja verdade e você talvez esteja errada. Por acaso já lhe ocorreu isso? Você sabe... Você ainda não atingiu a maturidade, é apenas uma...
- Está certo, Lane, ele esteve extraordinário, se quisermos pensar em termos de talento. Mas se você quiser interpretar Playboy como deve ser, você terá de ser um gênio! É assim mesmo e contra isso nada há que se fazer -. Franny arqueou um pouco as costas, a boca entreaberta, como se tivesse dificuldade em respirar, e levou a mão à nuca. - Sinto-me tão estonteada, tão esquisita. Não sei o que se passa comigo.
- Você pensa que é um gênio, não é isso?

Franny retirou a mão da cabeça e deixou-a cair morta sobre a mesa.

- Oh, Lane... Por favor, não faça isso comigo.
- Mas o que foi que eu...
- Tudo o que sei é que estou perdendo o juízo. Estou farta, mas farta mesmo, de ego, ego, ego. Do meu e dos outros. Estou cheia até aqui de gente que quer fazer alguma coisa diferente, chegar onde ninguém chegou, ser alguém interessante... É um nojo... é um verdadeiro nojo. E não me interessa o que os outros digam.

Lane franziu a testa e recostou-se na cadeira, para dar maior ênfase à frase que pretendia disparar. Com uma fleuma estudada perguntou:

- Você tem certeza de que não está, simplesmente, com medo da concorrência? Eu não sou muito forte nisso, mas aposto que um bom psicanalista... isto é, um que seja verdadeiramente competente... interpretaria talvez a tua atitude como...
- Não - interrompeu Franny, secamente. - Eu não tenho medo da concorrência. Competir com os outros não me assusta. É justamente o contrário. O que me apavora é querer competir... para ganhar. Por isso larguei o curso de Arte Dramática. O fato de eu estar horrivelmente condicionada para aceitar valores de outros todos, e de gostar dos aplausos e da gente que delira à minha volta, não me impede de ver que isso tudo é errado. Tenho vergonha disso. Estou cansada disso. Repugna-me não ter a coragem de ser uma criatura como as outras... Estou farta de mim e de todos os que andam no mundo querendo fazer algum sucesso.

Calou-se, pegou no copo e levou-o aos lábios.

Franny & Zooey
J. D. Salinger

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Mais perto, sem medo.

Hoje, meu irmão, como em todos os outros dias, me ocorreu de te pedir desculpas por tudo. Por ser uma das mentoras dessa guerra fundamentada no orgulho que nos foi passado pelo sangue. Orgulho covarde esse nosso; e assassino. Hoje, meu irmão, eu tive vontade de te dirigir a palavra como quem pede o sal do outro lado da mesa onde nunca nos encontramos. Tive vontade de chegar, te ver sentado no sofá e dizer oi sem parar meu caminhar em direção ao meu quarto, como quem volta da rua, quando, na verdade, eu estaria voltando de outro mundo e esbarrando em você no meio da Via Láctea.

Hoje, meu irmão, depois de tanto tempo querendo acreditar no homem tosco, ignorante e perigoso "que te criei", você me mostra seu tom de voz mais singelo, seu olhar mais emocionado, e o afeto mais genuíno que eu já conheci. Te vi murcho, absolutamente sem amarras. Ao mesmo tempo você carregava a força do magma de um vulcão adormecido querendo explodir. Choro quente, foi o que eu vi, destruindo minha cidade de mentira.

Hoje, meu irmão, você virou o meu mundo de cabeça para cima e deu um nó de seda pura na minha mente. Muito obrigado, disse meu coração sedento de um abraço seu.

Fiquemos juntos agora. Lutemos juntos daqui em diante. Nos reconheçamos sempre.

Hoje, meu irmão, nossa verdade é essa.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

27.11.10

Chove forte e o tempo é pequeno.
Não quero não. Deixar de pensar. Rasos.
Acabou o cigarro. Acho que vou ter que ir até a padaria.
É isso que eu sou. A padaria do seu Zé. E precisa passar uma estrada no meio.

(Eu tô com vontade de chorar mas a chuva já passou e eu vou ter que encarar o tempo que estendeu).

Progresso.
Eu queria que passasse um caminhão.
Eu queria que passasse um disco voador.
Eu só queria que passasse.

Hoje não parece aquele trecho?
Vejo uma coisa imbecil na minha cabeça: marginal.

Eu gosto de escrever com lápis porque ele é seco. Eu gosto de escrever de lápis porque ele quebra. Você vê quando ele vai morrer. Eugostodeescreverdelápisporquedápraapagar.

Eu gosto do que acontece de última hora.
É uma intensidade de amor muito permanente.

Poli, Clara e Béba.
Cine BsB. Carro. Estacionamento proibido.

sábado, 11 de junho de 2011

Não estou bem. A minha vontade é de gritar pro mundo que não estou bem há muito tempo. Há muitos anos, desde que nasci. Não posso lutar contra minha natureza, não é digno. Não posso continuar sendo quem sou, não é aceitável. É desprezível. Outro dia esqueci quantos anos eu tinha. O dia do meu nascimento não fazia sentido e fazer as contas a partir dele faria menos sentido ainda. Vinte e um, alguém me lembrou. Que alívio saber quanto já vivi. Mas que sufoco, que desespero, que culpa, que ânsia é essa? Nada aconteceu. Então por que tá tudo errado?
ONDE EU DESCANSO?

domingo, 29 de maio de 2011

Texto para uma separação

Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
Essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse Bob Wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu co'a minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?

Elisa Lucinda
Da série Machomachuca, 1986

domingo, 8 de maio de 2011

Histórias de cronópios e de famas

I. Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

II. Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com os dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

Julio Cortázar

sábado, 23 de abril de 2011

Dor fina e afinada

Você fique feliz, compre uma metralhadora, embarque para Paris, boceje.
E me perdoe.


Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se organizará rápida e meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só esperassem por um momento seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma cornucópia de bem-venturanças.
Só não sei bem que palavras usaria. Por não sabê-las, penso: se eu não conseguir escrever nada tão desvairadamente feliz, talvez consiga o contrário. Um texto terrivelmente melancólico, então. Que depois de ler você chore lágrimas sentidas (chorar é bom, libera energia escura, expulsa venenos que não sairiam do corpo de outra forma). Que você rememore todas as perdas, uma por uma, e pense também na dor física, na solidão sem remédio, na morte inadiável. Para piorar tudo, pense também nisso que chamam de “os destinos do País”.
Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns!) para A Causa do Povo.
Talvez não consiga. Não, decididamente não vou conseguir: quem sabe tento o hermetismo? Com palavras sonoras, milimetradas. Que você ao lê-las tenha vontade de escandí-las (nunca pensei que fosse capaz desta sintaxe janista...), batendo os dedos no tampo da mesa. Palavras frementes de climas, a mata amazônica ao lado de um deserto marciano e, logo a seguir, um coração em chamas junto de uma frígida reflexão cibernética. Não haveria emoção: só ritmo. Não haveria sentido: só forma.
Dá vontade de escrever carta, dizendo coisas que as pessoas não dizem mais, porque seriam coisas que só se dizem por carta, não por telefone, e ninguém escreve mais carta, só telefona, e portanto há coisas que não são mais ditas entre as pessoas. Que coisas, não sei ao certo. Que hoje não consigo quase nada, além de pensar vadio. Isso, aquilo: perdoe.
Como você consegue, como você consegue? Perguntariam. Acontece que também não consigo. É que hoje estou em suspenso. O dia deu em chuvoso, como no poema de Fernando Pessoa. Meio-dia em ponto, a mala para arrumar (viver é sempre meio Pessoa) e visitar o baú (meu terapeuta descobriu que Porto Alegre para mim é um baú), sentado em frente à janela, a cabeça fica borboleta. Lembro de coisas inesperadas como os pés de meu pai de repente sou tomado de louca compaixão pelos pés de meu pai, pés cansados de homem de quase 70 anos, pés que devem sentir muito frio em agosto. Quando começo a considerar a hipótese de dar um par de meias a ele (nunca fui muito bom em presentes) no Dia dos Pais, a cabeça dispara e lembro que preciso encontrar urgente aquela Nana Caymmi cantando Copacabana, se não morro. E prometi levar o Bukowski em quadrinhos para meu irmão Felipe (o mais bukowskiano de todos os irmãos), e preciso dar uns telefonemas, inclusive para Silvia Simas, que me abandonou, então não ligo. Pronto, acabou: não preciso ligar para ninguém, já que ninguém liga para mim. Então vem na memória Maria Julieta Drummond de Andrade, vem uma dor fininha junto. Linda, ela.

Caio Fernando Abreu, 1987

sábado, 9 de abril de 2011

Só de vez em quando

Já me matei faz muito tempo.
Me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre,
nunca mesmo o sempre passo.

Morrer faz bem à vista e ao baço,
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma.

Morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma.

Paulo Leminski

Ham on Rye

(...) The problem was you had to keep choosing between one evil or another, and no matter what you chose, they sliced a little bit more off you, until there was nothing left. At the age of 25 most people were finished. A whole god-damned nation of assholes driving automobiles, eating, having babies, doing everything in the worst way possible, like voting for the presidential candidates who reminded them most of themselves. I had no interests. I had no interest in anything. I had no idea how I was going to escape. At least the others had some taste for life. They seemed to understand something that I didn’t understand. Maybe I was lacking. It was possible. I often felt inferior. I just wanted to get away from them. But there was no place to go (...)

Charles Bukowski

domingo, 3 de abril de 2011

Ana Cristina César

I.

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando uma informação difícil. Agora
silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura
menos que o seu amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
N5o, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio
do grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer
chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande
rio e os três barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da
tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.


II.

Segunda história rápida sobre a felicidade –
descendo a colina ao escurecer – meu amor ficou
longe, com seu ar de não ter dúvida, e dizia: meus
pais... – não posso mais duvidar dos meus
passinhos, neste sítio – você agora fala até mais
baixo, delicada que eu reparo mais que os outros
depois de um tempo fora – é como voltar e achar as
crianças crescidas, e sentar na varanda para trocar
pensamentos e memórias de um tempo que passou –
mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda
havia ares de mistério – agora, é agora, descendo
esta colina, sem nenhum, que eu conto então do
amor distante, e não imito a minha nostalgia, mas a
delicadeza, a sua, assim feliz.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Mentira

Uma vez, enquanto deitadas naquela espécie de cama azul sem pés que usamos - eu, você, todos os seus amigos, os amigos dos seus amigos, as suas ex-namoradas, às vezes alguém da sua família, enfim, todos usamos - para assistir televisão, o meu nariz encaixado no seu pescoço, eu disse a você: "Quando estamos assim eu me sinto em casa". Você me perguntou: "Assim como?"; eu respondi: "Assim: eu, você, meu nariz, seu pescoço".

Essa foi uma das minhas mentiras pra você. E pra mim também; Deus do céu, como eu minto pra mim quando minto pra você. Aquela não era a minha casa, não chegava nem perto da sensação que se tem quando se está em casa, e ainda assim eu disse o que disse. Naquele momento, como nos outros momentos que minto pra você e pra mim, me senti tirando a roupa, sem vontade nem tesão, como se parte de mim me obrigasse a te mostrar todas as minhas imperfeições e você conhecesse a minha parte podre de uma vez. Como se você tivesse a obrigação de assistir àquele meu desnudamento, beijasse todas as minhas feridas e dissesse que me ama, ou me expulsasse num pontapé de olhar que eu nunca mais ia pensar em falar uma babaquice daquelas de novo.

O pior de tudo foi a luz acesa. Consegui enxergar a cara de todos os seus amigos deitados ali com a gente, e os amigos dos seus amigos, e suas ex-namoradas, e sua família, todos os seus conhecidos e, de repente, o porteiro do seu prédio, sua vizinha, sua empregada e, mais de repente ainda, eu vi seu carro parado ali na nossa frente, malvado; seu celular perverso me criticando. Tudo, naquele momento eu estava nua pra todos e tudo. Penso no trauma da sua cachorra e do seu gato que foram obrigados a ver a cena, também sentindo pena de mim.

E por que tudo isso? Pra quê?

Mentir só por mentir. Pra ver se o outro acredita. Pra ver se dá certo. Pra garantir o seu. Pra te dar segurança. E mais um monte de bosta que passa na cabeça de quem só sabe jogar. Foi assim que eu aprendi e foi assim que deu certo. Mas não dessa vez. Olha só, pode ficar tranquila que a mentira não te pegou, não foi convincente o suficiente. Minha capacidade de mentir/persuadir/manipular se esvaiu quando menti pra você pela primeira vez aquela noite, naquele quarto de hotel, há pouco mais de seis meses.

Fica tranquila, garota, só quem acreditou fui eu.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro, 1935

domingo, 2 de janeiro de 2011

A benção de Clarice

Sempre tive o sonho de escrever.
Sempre tive o sonho de fazer qualquer coisa ligada à arte, qualquer coisa que me desse um toque de mistério nas minhas atitudes, nos meus pensamentos, na minha maneira de me vestir, de andar, de comer, de gesticular..
Eu acreditava que a arte transformava as pessoas em loucos-bonitos, em heróis. Ainda acredito que transforme, só que naquela época eu achava bacana morrer de overdose, como Janis Joplin e um monte daquela geração. Hoje eu acho bacana morrer trabalhando, assim, no meio do palco, como Cacilda Becker. E como ela só teve ela, mesmo. Muito mais glorioso.

Essa loucura-bonita, na minha cabeça, me tornaria um pouco mais interessante que as outras mulheres, e também mais interessante que os homens que me rodeavam - nunca fui de me comparar à um gênero só, e sempre fui de me comparar. Sempre fui muito competitiva, com qualquer pessoa, e é com toda a humildade que digo que era uma competitividade boa, porque era competitiva comigo também no mesmo grau que era com os outros. Poucas vezes isso virou doença. Ou, se virou, hoje essa doença foi aceita, e doença aceita deixa de ser doença -.

Nunca tinha conhecido qualquer autor ou mesmo qualquer livro que me fizesse gostar, realmente gostar de ler. Todo mundo, no meu meio, pelo menos, teve um livro na infância que o considerasse o "livro da minha infância". Quase sempre é O Pequeno Príncipe. Bom, eu nunca tive um "livro da minha infância". Me lembro de uma coleção que tinha (linda, por sinal) dos contos de Monteiro Lobato, mas nada que me marcasse tanto assim. E também nunca li O Pequeno Príncipe, até hoje (!), então se você vier com aquela história de que "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" como lição de moral, saiba que eu só vou te responder porque essa história já está batida, e não foi nenhuma raposa que me contou, e sim uma ex-namorada, o que é quase a mesma coisa, dependendo do ponto de vista.

Conheci Clarice Lispector (adoro metonímias!) bem atrasada, aos dezesseis anos. Mas comecei lendo A Hora da Estrela, então tudo bem. De cara me identifiquei com Macabéa, não pelo físico, não pelo sotaque, não pela condição social, não pelo destino, mas sim, pelo vazio. E sim, talvez pelo destino também. Acredito que todo mundo que tenha lido com um pouco mais de sensibilidade, sentiu exatamente a mesma coisa. É isso que mais me inspira neste tipo de dramaturgia, o fato de que mesmo você não tendo aparentemente absolutamente nada a ver com o tal do personagem, você tem tudo a ver com ele. Por causa das palavras, entende? Por causa das frases que as palavras formam, por causa dos períodos que as frases formam, por causa de cada vírgula e cada ponto, por causa da alma presente no texto.

Quando Clarice fala dessa desorientação, desse não-entendimento como pulsão de vida, das limitações do fazer sentido, do abismo.. Eu tenho vontade de viver. Eu digo pra mim mesma: "é isso. A vida é isso, pode continuar." E quando ela oferece sua alegria nas páginas de um jornal, quando diz que amor é, na verdade, a soma das incompreensões, e que a saudade é como a fome, só passa quando se come a presença, eu tenho absoluta certeza de que estou no caminho certo, que como ela mesma diz, é, às vezes, o perder-se.

Pertencimento pelo estranhamento - é essa sua benção!