sábado, 23 de abril de 2011

Dor fina e afinada

Você fique feliz, compre uma metralhadora, embarque para Paris, boceje.
E me perdoe.


Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se organizará rápida e meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só esperassem por um momento seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma cornucópia de bem-venturanças.
Só não sei bem que palavras usaria. Por não sabê-las, penso: se eu não conseguir escrever nada tão desvairadamente feliz, talvez consiga o contrário. Um texto terrivelmente melancólico, então. Que depois de ler você chore lágrimas sentidas (chorar é bom, libera energia escura, expulsa venenos que não sairiam do corpo de outra forma). Que você rememore todas as perdas, uma por uma, e pense também na dor física, na solidão sem remédio, na morte inadiável. Para piorar tudo, pense também nisso que chamam de “os destinos do País”.
Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns!) para A Causa do Povo.
Talvez não consiga. Não, decididamente não vou conseguir: quem sabe tento o hermetismo? Com palavras sonoras, milimetradas. Que você ao lê-las tenha vontade de escandí-las (nunca pensei que fosse capaz desta sintaxe janista...), batendo os dedos no tampo da mesa. Palavras frementes de climas, a mata amazônica ao lado de um deserto marciano e, logo a seguir, um coração em chamas junto de uma frígida reflexão cibernética. Não haveria emoção: só ritmo. Não haveria sentido: só forma.
Dá vontade de escrever carta, dizendo coisas que as pessoas não dizem mais, porque seriam coisas que só se dizem por carta, não por telefone, e ninguém escreve mais carta, só telefona, e portanto há coisas que não são mais ditas entre as pessoas. Que coisas, não sei ao certo. Que hoje não consigo quase nada, além de pensar vadio. Isso, aquilo: perdoe.
Como você consegue, como você consegue? Perguntariam. Acontece que também não consigo. É que hoje estou em suspenso. O dia deu em chuvoso, como no poema de Fernando Pessoa. Meio-dia em ponto, a mala para arrumar (viver é sempre meio Pessoa) e visitar o baú (meu terapeuta descobriu que Porto Alegre para mim é um baú), sentado em frente à janela, a cabeça fica borboleta. Lembro de coisas inesperadas como os pés de meu pai de repente sou tomado de louca compaixão pelos pés de meu pai, pés cansados de homem de quase 70 anos, pés que devem sentir muito frio em agosto. Quando começo a considerar a hipótese de dar um par de meias a ele (nunca fui muito bom em presentes) no Dia dos Pais, a cabeça dispara e lembro que preciso encontrar urgente aquela Nana Caymmi cantando Copacabana, se não morro. E prometi levar o Bukowski em quadrinhos para meu irmão Felipe (o mais bukowskiano de todos os irmãos), e preciso dar uns telefonemas, inclusive para Silvia Simas, que me abandonou, então não ligo. Pronto, acabou: não preciso ligar para ninguém, já que ninguém liga para mim. Então vem na memória Maria Julieta Drummond de Andrade, vem uma dor fininha junto. Linda, ela.

Caio Fernando Abreu, 1987

sábado, 9 de abril de 2011

Só de vez em quando

Já me matei faz muito tempo.
Me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre,
nunca mesmo o sempre passo.

Morrer faz bem à vista e ao baço,
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma.

Morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma.

Paulo Leminski

Ham on Rye

(...) The problem was you had to keep choosing between one evil or another, and no matter what you chose, they sliced a little bit more off you, until there was nothing left. At the age of 25 most people were finished. A whole god-damned nation of assholes driving automobiles, eating, having babies, doing everything in the worst way possible, like voting for the presidential candidates who reminded them most of themselves. I had no interests. I had no interest in anything. I had no idea how I was going to escape. At least the others had some taste for life. They seemed to understand something that I didn’t understand. Maybe I was lacking. It was possible. I often felt inferior. I just wanted to get away from them. But there was no place to go (...)

Charles Bukowski

domingo, 3 de abril de 2011

Ana Cristina César

I.

Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando uma informação difícil. Agora
silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura
menos que o seu amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
N5o, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio
do grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer
chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande
rio e os três barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da
tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.


II.

Segunda história rápida sobre a felicidade –
descendo a colina ao escurecer – meu amor ficou
longe, com seu ar de não ter dúvida, e dizia: meus
pais... – não posso mais duvidar dos meus
passinhos, neste sítio – você agora fala até mais
baixo, delicada que eu reparo mais que os outros
depois de um tempo fora – é como voltar e achar as
crianças crescidas, e sentar na varanda para trocar
pensamentos e memórias de um tempo que passou –
mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda
havia ares de mistério – agora, é agora, descendo
esta colina, sem nenhum, que eu conto então do
amor distante, e não imito a minha nostalgia, mas a
delicadeza, a sua, assim feliz.