terça-feira, 27 de setembro de 2011

Retrato III

E a mim que ali me sentava, no pátio da Pousada Francesa, pareceu que o segredo da existência nada era senão um esqueleto de morcego no armário; e que nada era o enigma senão o entrecruzamento de uma teia de aranha; tão sólida ela parecia ser. Ela estava no sol, sentada. Não usava chapéu. A luz a fixava. Não havia sombra. Seu rosto era amarelo e vermelho; e arredondado; uma fruta num corpo; outra maçã, só que não no prato. Seios que se formaram no seu corpo com a dureza de maçãs sob a blusa.

Eu a observava. Sua pele vibrou como se uma mosca tivesse andado nela. Alguém passou; vi as folhas estreitas das macieiras tremerem vibradas por seu olhar. Sua rudeza, sua crueldade, era como casca grossa com líquen, e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida.

Virginia Woolf

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Cena I: Franny perde o apetite.

- Como vai a peça? - perguntou Lane, ocupado com os caracóis.
- Não sei. Não vou trabalhar nela. Desisti.
- Desistiu? - Lane levantou os olhos do prato, surpreendido.
- Eu supunha que você andava louca com o seu papel. Que aconteceu? Deram o papel a outra?
- Não, nada disso. O papel era meu. Oh, uma chatice, uma verdadeira chatice.
- Mas então o que foi que aconteceu? Não me diga que largou o curso de teatro, largou?

Franny fez que sim com a cabeça, enquanto bebia um gole de leite.

Lane esperou que ela tivesse acabado de mastigar e de beber.

- Mas, pelo amor de Deus - disse ele então - explica por quê! Eu achava que o maldito teatro era a tua paixão. Você quase não sabia falar de outra coisa...
- Larguei tudo e pronto! O negócio já estava ficando chato. Comecei a me sentir como uma egomaníaca -. Refletiu uns instantes. - Não sei bem explicar. Acho que era de um certo mau-gosto querer trabalhar em teatro em primeiro lugar. Refiro-me à presença do ego no teatro. E detestava a mim própria, quando estava em cena e, depois, terminada a peça, ter que ir para os bastidores. Todos aqueles egos correndo afobados de um lado para o outro, e mostrando-se terrivelmente generosos e entusiásticos. Beijando todo o mundo e usando maquilagem por tudo quanto é lado, e tentar parecer terrivelmente natural e simpática quando os amigos vêm nos ver nos bastidores. Puxa, como eu me detestava nessas alturas! E o pior de tudo é que eu sentia uma espécie de vergonha por entrar nessas peças... Especialmente as do repertorio de verão -. Encarou Lane. - E eu tinha sempre bons papéis, não há razão para que você olhe pra mim desse jeito! A questão não era essa. Era, simplesmente, que eu sentiria uma vergonha terrível se, por exemplo, alguém a quem eu respeito... os meus irmãos, por exemplo... entrasse no teatro e me ouvisse recitando algumas das linhas que eu tinha de dizer. Eu costumava escrever a algumas pessoas e pedir-lhes que não fossem me ver.

Refletiu por mais alguns instantes e continuou:

- Exceto no papel de Pegeen, em Playboy, que representei no verão passado. Quer dizer, poderia ter sido espetacular mesmo, se o canastrão que fazia o playboy não estragasse tudo. Oh, meu Deus, como ele era lírico! Nunca vi um sujeito mais meloso!

Lane terminara seus caracóis. Estava imóvel, olhando para ela deliberadamente sem expressão.

- Mas ele teve boas críticas. Eu me lembro perfeitamente, você até me mandou recortes.

Franny suspirou.

- Está bem, Lane. Não vamos discutir isso, tá?
- Não. Mas uma coisa tenho de dizer, Franny. Você esteve falando quase meia hora como se fosse a única pessoa do mundo que tem bom-senso, que tem alguma capacidade crítica. Quer dizer, se alguns dos nossos melhores críticos acharam que o sujeito ia bem na peça, talvez seja verdade e você talvez esteja errada. Por acaso já lhe ocorreu isso? Você sabe... Você ainda não atingiu a maturidade, é apenas uma...
- Está certo, Lane, ele esteve extraordinário, se quisermos pensar em termos de talento. Mas se você quiser interpretar Playboy como deve ser, você terá de ser um gênio! É assim mesmo e contra isso nada há que se fazer -. Franny arqueou um pouco as costas, a boca entreaberta, como se tivesse dificuldade em respirar, e levou a mão à nuca. - Sinto-me tão estonteada, tão esquisita. Não sei o que se passa comigo.
- Você pensa que é um gênio, não é isso?

Franny retirou a mão da cabeça e deixou-a cair morta sobre a mesa.

- Oh, Lane... Por favor, não faça isso comigo.
- Mas o que foi que eu...
- Tudo o que sei é que estou perdendo o juízo. Estou farta, mas farta mesmo, de ego, ego, ego. Do meu e dos outros. Estou cheia até aqui de gente que quer fazer alguma coisa diferente, chegar onde ninguém chegou, ser alguém interessante... É um nojo... é um verdadeiro nojo. E não me interessa o que os outros digam.

Lane franziu a testa e recostou-se na cadeira, para dar maior ênfase à frase que pretendia disparar. Com uma fleuma estudada perguntou:

- Você tem certeza de que não está, simplesmente, com medo da concorrência? Eu não sou muito forte nisso, mas aposto que um bom psicanalista... isto é, um que seja verdadeiramente competente... interpretaria talvez a tua atitude como...
- Não - interrompeu Franny, secamente. - Eu não tenho medo da concorrência. Competir com os outros não me assusta. É justamente o contrário. O que me apavora é querer competir... para ganhar. Por isso larguei o curso de Arte Dramática. O fato de eu estar horrivelmente condicionada para aceitar valores de outros todos, e de gostar dos aplausos e da gente que delira à minha volta, não me impede de ver que isso tudo é errado. Tenho vergonha disso. Estou cansada disso. Repugna-me não ter a coragem de ser uma criatura como as outras... Estou farta de mim e de todos os que andam no mundo querendo fazer algum sucesso.

Calou-se, pegou no copo e levou-o aos lábios.

Franny & Zooey
J. D. Salinger

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Mais perto, sem medo.

Hoje, meu irmão, como em todos os outros dias, me ocorreu de te pedir desculpas por tudo. Por ser uma das mentoras dessa guerra fundamentada no orgulho que nos foi passado pelo sangue. Orgulho covarde esse nosso; e assassino. Hoje, meu irmão, eu tive vontade de te dirigir a palavra como quem pede o sal do outro lado da mesa onde nunca nos encontramos. Tive vontade de chegar, te ver sentado no sofá e dizer oi sem parar meu caminhar em direção ao meu quarto, como quem volta da rua, quando, na verdade, eu estaria voltando de outro mundo e esbarrando em você no meio da Via Láctea.

Hoje, meu irmão, depois de tanto tempo querendo acreditar no homem tosco, ignorante e perigoso "que te criei", você me mostra seu tom de voz mais singelo, seu olhar mais emocionado, e o afeto mais genuíno que eu já conheci. Te vi murcho, absolutamente sem amarras. Ao mesmo tempo você carregava a força do magma de um vulcão adormecido querendo explodir. Choro quente, foi o que eu vi, destruindo minha cidade de mentira.

Hoje, meu irmão, você virou o meu mundo de cabeça para cima e deu um nó de seda pura na minha mente. Muito obrigado, disse meu coração sedento de um abraço seu.

Fiquemos juntos agora. Lutemos juntos daqui em diante. Nos reconheçamos sempre.

Hoje, meu irmão, nossa verdade é essa.