quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tudo acaba na estreia

O teatro! Dessa experiência, todavia, ele, meio tímido, pouco dado a se socializar, extrai principalmente a maneira com que o obriga a se abrir para o mundo, a necessidade - em seu caso, absolutamente inédita - de submeter seu trabalho à opinião, às ideias, ao gosto dos outros, e eventualmente de corrigi-lo se sua tradução, por mais perfeita que soe no papel, assim que sai da máquina, na boca dos atores, como mais de uma vez fica evidente nos ensaios, deixa a desejar ou se mostra pura e simplesmente impronunciável. Acostumado a trabalhar sozinho, a ser seu próprio patrão e a não ter sócios, tem dificuldade em confiar no tipo de sociabilidade que o teatro alardeia, ao mesmo tempo incondicional e cheia de caprichos, que, assim como nasce de maneira estrepitosa na apresentação oficial do elenco, floresce com a chamada leitura do texto, os ensaios, as provas de figurino, as rivalidades, a paquera indiscriminada, consolida-se com imensos espaços de tempo desperdiçados em esperas, atrasos, crises de choro nos camarins, reuniões nos cafés dos arredores do teatro, e chega ao auge absoluto com a estreia, assim também não demora a se dissipar com as primeiras apresentações, como se toda essa articulada estrutura social só tivesse sido levantada para fazer frente às exigências extremas da estreia, e acaba por se esfumar poucas semanas depois, quando a obra sai de cartaz e os mesmos que um mês atrás teriam dado a vida por qualquer outro membro do elenco agora se afastam, cada um para seu lado, numa debandada triste, sem som, em busca de um novo contrato de trabalho. Mesmo assim, ele - guardadas as proporções, lógico, porque também não é o caso de ficar dando murro em ponta de faca - adere a essa instável fraternidade com entusiasmo, como quem abraça um tratamento médico cuja eficácia é estritamente proporcional aos sacrifícios que demanda. Adere mesmo quando se expõe às inclemências para as quais está menos preparado: por exemplo, superar uma timidez doentia e conversar com uma atriz que está vendo pela primeira vez na vida, que lhe agrada (embora meses possam se passar antes que ele reconheça isso) e que de repente, sem nenhum aviso, enquanto rói com pudor o debrum brilhante de uma das asinhas do traje que lhe coube em sorteio, pergunta se já lhe aconteceu de uma fada de um bosque dos arredores de Atenas se oferecer para chupar seu pau no banheiro de um camarim de teatro; ou, como acontece numa tarde que ele jamais vai esquecer, que semanas depois continua a deixá-lo vermelho de vergonha, não importa onde o assalte a lembrança, isto: ter de atravessar na presença de todo o elenco o vasto tablado da sala de ensaio, vestido com sua calça de veludinho cotelê, sua camisa listada, seu colete de lã e sua suscetibilidade, sinais de um retraimento, um apego à convenção e um "medo do corpo" - como ouve depois, enquanto foge escadas abaixo, alguém comentando em voz baixa - nos quais jamais lhe ocorreria pensar, de tanto que fazem parte de sua natureza, se não fosse confrontado pelo sarcasmo com que os atores o olham - eles, que não estão vivos se não têm alguém olhando para eles - e por sua própria imagem, desamparada e hesitante, refletida no espelho que ocupa de ponta a ponta toda a parede mais extensa da sala.

Extrai da experiência a efervescência social, a excitação, a paixão de depender dos outros, de emprestar meias, sapatilhas de dança, maquiagem, absorventes, e mesmo a compulsão dos atores de se beijar e se abraçar por qualquer motivo, muito mais própria de ex-colegas de uma viagem de formatura ou de sobreviventes de uma catástrofe aérea do que de gente acostumada a ver a cara um do outro dia sim dia não no palco de um teatro, num curso de clown ou num daqueles restaurantes do centro da cidade que ficam abertos até altas horas. Extrai, enfim, tudo aquilo que o contradiz e o tira de si, de sua introspecção, mesmo correndo o risco de incomodá-lo ou, como acaba acntecendo, de lhe fazer jurar em segredo que nem todo o ouro do mundo o convencerá outra vez a escrever uma linha que seja para o teatro.

História do cabelo
Alan Pauls

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Quero saber

Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar
por fim, não introduzir mercadorias
como o faziam os colonizadores
trocando baralhinhos por silêncio.
Pago eu aqui por teu silêncio.
De acordo, eu te dou o meu
com uma condição: não nos compreender.

Pablo Neruda