domingo, 18 de novembro de 2012

Quinto fragmento da décima terceira voz

Tanto sangue dentro do meu derramado coração, era assim? Talvez fosse, mas não se trata disso. Lamúria insuportável, o corpo, esse que se arrasta com suas carências. Não precisa pressa, calma lá. A porteira está fechada para quem quiser passar, era isso? Já te disse que não responderei. Quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doía. Continua doendo. Ainda não acabou. Passa, passará. Ás vezes ficávamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o seu destino. Marte, Ossanha gostava das folhas, das pedras. De peixes também. Ele me insinuou que as pedras eram vivas. Desde então eu as mantenho imersas em copos cheios d'água, para que cresçam. São muitas. Agora espero outro. Que, como ele, não será mais do que Uma Nova Metáfora do Encontro. Por enquanto espio as pombas nas cumeeiras. Quando não há música, canto. Quando paro de cantar, como maçãs. Os talos estão jogados pelo quarto, entro os lençóis. Apodrecem como meus sentimentos, jogados na Via-Láctea. Esfrego a lâmpada, mas o gênio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela até me levarem para a mesa de choques. 

V. ÍSIS

Fiquei olhando os bombons caídos no chão, misturados aos cacos coloridos. Martha e Marília repetiam tanto que precisávamos economizar que me curvei para apanhá-los. Júlio esbarrou em mim, cravei um dos cacos na palma da mão esquerda. Quando consegui arrancá-lo percebi que era de um azul muito claro, cor do céu nas tardes de verão. Lambi o sangue que não estancava manchando os bombons, os outros cacos. Ia enxugar o sangue na barra da saia quando vi o pano branco no chão, mas só depois de tê-lo enrolado nos dedos é que Marília gritou e percebi que era o seu bordado. Aquele inacabado, dos ramos de trigo, dos quatro cantos. Tarde demais, pensei. E sem querer pensei junto que, com as manchas de sangue, o trigo pareceria ter brotado num campo de papoulas. Lembrei em seguida das papoulas que Linda e eu costumávamos comprar no final da primavera. Desejei que hoje fosse outra vez como uma manhã de novembro, verão novo no ar, para que pudéssemos colocá-las, sobretudo as vermelhas, as papoulas por todos os cantos da casa, em vasos brancos.

Tive vontade de chorar quando pensei que o verão estava quase no fim, tive pena de mim mesma assim gorda, inícios de março, os cachorros loucos em volta da casa, jogada ali no chão da cozinha entre bombons esmagados, tábuas, pregos, cacos coloridos, sangue, Marcelo e Anaís trancados nos quartos. Arthur no banheiro, Marília muito pálida à minha frente, braços cruzados sobre o peito, olhos fixos no pano que o sangue de minha mão encharcava cada vez mais. Ai o trigo, as papoulas, o bordado.

Para não chorar, por ter pensado na noite de março descendo clara sobre os telhados, pelos bombons esmagados, principalmente por meu dedo, acho, para calar a fome de açúcar no fundo da garganta, foi que comecei a cantar. Devia estar patética e porca e triste jogada pelo chão, mas como se aprovasse o que eu ainda não começara a fazer, Linda sorriu quando abri a boca. Sem que eu escolhesse a canção foi nascendo   summertime sim eu repeti summertime and the living is easy. A voz a princípio fraca, desafinada, perseguindo uma melodia que escorregava entre os acordes repetidos do piano vindos da sala, mas aos poucos mais forte, nítida, para meu próprio espanto fish are jumping and the cotton is high sufocando todos os outros sons. Pouco a pouco, Marília, Raul, Júlio, Linda, Ricardo, Pedro, Martha, Virgínia sentaram-se à minha volta enquanto a noite descia, e quem sabe para tranquilizá-los eu repetia e repetia one os these mornings e Marília fechou os olhos I will gonna rise up singing e Raul sorriu you're gonna spread e Júlio apagou o cigarro your wings e Ricardo distendeu os músculos do rosto and you'll take to the sky e Pedro fechou o livro but till that morning e Martha tirou os óculos there's nothing can harm you e Virgínia olhou para cima como se visse o céu with your mammy and daddy standing by e Linda então abriu devagarinho os braços começando a dançar enquanto todos batiam palmas ritmadamente e eu retomava a primeira parte da letra e todos cantávamos juntos tão alto e claro summertime summertime summertime tão completamente confiantes na manhã de sol próxima que não havia mais cães soltos nem xícaras quebradas ou bombons esmagados pelo chão.

Minha voz era maior que eu e mais forte que todos os demônios soltos pela casa. Para manter eterno o verão atrás da janela, eu cantaria até o amanhecer, cantaria cada vez mais alto até que Marcelo, Anaís e Arthur viessem se reunir a nós como antigamente e como antigamente Linda me abraçaria entrelaçando papoulas douradas nos meus cabelos, pedindo que cantasse mais. Como se estivesse grávida de um tempo novo, eu cantava. Mas tudo mudou. Linda começou a girar cada vez mais depressa. O que costumava ser doce em sua dança foi-se transformando numa espécie de fúria que fazia os outros baterem palmas cada vez mais rapidamente até que, dissociados, havia quatro planos distintos, sonoros, dentro da cozinha. Os uivos dos cães, o piano na sala, os movimentos de Linda e minha canção cada vez mais esfarrapada. Comecei a cantar ais baixo. Até calar. E voltou a fome de açúcar. O sangue escorria da palma da mão. Levantei com dificuldade para procurar nos armários fechados outra caixa de bombons. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Quarto fragmento da décima terceira voz

Me perdoa, não sei se conseguirei. Disse a ela, é necessário o escuro porque dele brota luz. Como uma larva no interior visguento da crisálida, sem supor que a borboleta será seu próximo momento. Tão bíblico, ai, tão edificante. Toma cuidado, senão daqui a pouco escreverás que viste uma pombinha branca cruzando mansamente os céus, talvez uses até o plural (não te atreverias a dizer 'firmamento', não?), e era sexta-feira, dirias, dia de Oxalá. Foi exatamente o que vi, mas esquece. Tudo isso é um engano. Tenho vontade de trazê-la para cá, para cima do morro em Santa Teresa. Ela não suportaria, não suporta estar desperta e ter emoções. O ar é muito puro lá, chega a doer nos pulmões, eu disse quando ele espatifou as doze xícaras. Nenhum de nós poderia voltar atrás. Nem avançar ou parar de cantar. Eu era o décimo terceiro. E estava mudo. Tudo isso começou faz tanto tempo. Obliquidades, transparências. Reflexos sinuosos, ninguém compreenderia. Não estás sofrendo. Estás ausente da dor, tudo é branco. A escolha foi tua. Tem um preço: este.

IV. ARTHUR

Gosto do cheiro do corpo dela. Ao entardecer, quando se banha, deixando a pele libertar aquele perfume como o da terra molhada após as primeiras gotas de chuva. Gosto de seu rosto sem pintura alguma, do ar severo, das marcas sob os olhos, os cabelos escuros, partidos ao meio em bandós, presos na nuca por uma fita áspera, juta, sarja. Se mais tarde alguém me perguntasse por que, só poderia responder que quero Marília - soube disso pela primeira vez no momento exato em que a vi levantar-se da mesa com o bordado nas mãos. Como se a pata de um desses cães que andam lá fora se abatesse sobre a minha cabeça e entre a dor, a tontura e quem sabe também algum medo localizasse um fogo me incendiando por dentro. Sem soltar as tábuas, o martelo e os pregos, segui atrás dela pelo corredor, desviando-me do movimento que Linda fez com os braços para tentar me impedir. Não, ninguém perguntaria nada. Batem-se todos pela casa fechada, mais loucos que os cães lá fora. Sei ainda que somente eu - cabeça, princípio - mantenho qualquer coisa como uma lucidez, poderosa o suficiente para que nenhum deles se atreva a cobrar o que fiz.

Um bofetada em pleno rosto vê-la ali sentada, à beira daquela ridícula Pietà, a cabeça de Raul prestes a desabar em seu colo. Não decidi nada. Como se não fosse eu, ouvi o ruído das tábuas caindo nos ladrilhos, um momento depois de já ter feito o gesto. Sem largar o martelo, torci o braço de Marília até erguê-la do chão. O pano bordado escorregou sobre o rosto de Raul, como um desses lenços que cobrem a face dos cadáveres. Quase morto assim, face encoberta: matá-lo seria apenas consumar o que já estava feito. Com o braço livre, Marília interrompeu meu impulso no instante de baixar o martelo com força sobre os ossos dele. As unhas curtas, cheias de terra, cravadas no meu braço, um pedido nos olhos escuros. Eu disse que sim, que o pouparia se ela fugisse comigo. Pela clarabóia no teto do banheiro, se empilhar-mos alguns móveis poderemos abri-la para alcançar o telhado, de lá saltar para um dos galhos da figueira ao lado da casa e então, como macacos, através das árvores, chegar até o rio, passando para o outro lado. Os cães hidrófobos não se atreverão a cruzar aquela água.

Pedi todas essas coisas, cercando-a em volta da mesa. Percebi que tentava proteger alguma coisa com o corpo. Agora consigo dar certa ordem a tudo que ia acontecendo. Lembro da grande mesa de madeira e do vestido preto de Marília encobrindo algo sobre a mesa. Não quero fugir, ele disse. Não daqui, não com você. Foi quando tentou alcançar a porta que liga a cozinha ao corredor e o corredor à sala que vi o bule branco cercado por doze xícaras coloridas. De repente soube que o martelo permanecera entre meus dedos exatamente para esse próximo gesto. Muito tempo antes, ele já estava pronto. Creio que foi nesse momento que Marília fugiu.

Os cães uivavam, cada vez mais próximos. Espatifei primeiro o bule, depois, uma a uma as xícaras coloridas. Lembro dos cacos roxos de uma delas e de como, por alguma razão obscura, absurda, tentei proteger de meus próprios golpes a xícara vermelha. Mas meu gesto não respondia à minha vontade. Guardei apenas um dos cacos, que trouxe comigo para o banheiro.

Os outros começaram a correr para a cozinha. Ao passar, esbarrei no corpo redondo de Ísis. Martha falou alguma coisa que não entendi. Acho que escutei Raul repetir chorando que agora nada mais podia ser feito, que estávamos perdidos. Talvez estejam, eles. Não eu. Quando meu coração parar de bater tão forte, colocarei a cadeira sobre a privada, forçarei a clarabóia com o martelo para alcançar o telhado, a figueira, o rio, o outro lado. Talvez tenha o cuidado maligno de abrir por dentro a porta do banheiro, antes de fugir. Não seria impossível, nem muito difícil, que um dos cães alcançasse o telhado. Ele gostaria de atravessar o corredor rangendo os dentes, a espuma negra na boca, para encontrá-los como se nada tivesse acontecido, reunidos feito um patético simulacro de família na sala de jantar. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Terceiro fragmento da décima terceira voz

Naquele tempo a escada ainda não era amarela. Ela me ajudava. Quando as contrações se tornavam insuportáveis, eu descia pela escada que ainda não era amarela para repetir o disco. Isso me acalmava, molhar plantas, abrir livros ao acaso. Foi numa dessas vezes que encontrei os versos falando da maldição. Só então entendi que aquele era o momento exato do abandono dos Deuses. Quando Medéia perde os poderes por amor a Jasão, Exu se ausenta. Mas tudo isso é necessário? Tudo isso o quê? As explicações, as memórias, os mitos. Não sei, não sei, não consigo de outro jeito. Continuo esperando certa nitidez vinda de fora. Por enquanto, nesta outra cidade, ouço e vejo apenas o vento misturando terras, pólens, papéis, sementes, miasmas, folhas e histórias. Sopra mais forte na minha esquina sobre o abismo. Curva das Tormentas, eu a chamei. A enfermeira disse que por isso estão todos hoje mais agitados. Recuso a injeção para esquecer. Quero voar com o vento para o centro da Curva das Tormentas. Me ajuda, pai, meu pai - meu pai Ogum, senhor das estradas.

III. MARÍLIA

Eu a vi atravessar rápido o corredor. Parecia chorar. Nunca sabemos ao certo quando Anaís chora realmente ou se está apenas um pouco embriagada por seus licores açucarados, pelas drogas que costuma comprar nos dias em que vai à cidade, quase sempre às sextas. Logo depois ouvi os passos pesados de Marcelo saindo da cozinha para bater com força a porta do quarto. Não tive tempo de compreender. De repente havia um excesso de ruídos no ar, aquele disco de piano de que Linda tanto gosta, muito alto, um grito estridente de Ísis, os uivos dos cães, Ricardo parado no meio da sala dizendo que precisávamos fazer alguma coisa, Arthur trancando todas as portas enquanto Júlio caminhava de um lado para outro, fumando sem parar. Na mesa, Pedro, Virgínia, Martha e eu. Martha parecia concentrada fazendo contas na calculadora, anotando números no pequeno bloco, detendo-se às vezes para levantar os óculos redondos que frequentemente escorregam por seu nariz comprido. Virgínia terminava um mapa, traçando riscos retos, azuis ou vermelhos, com quadrados ou triângulos, entre os planetas. Pedro lia. Espiei por cima de seu ombro no momento em que sublinhava uns versos assim: Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento e do mar infecundo e do céu constelado, de todos, estão contíguos às fontes e confins, torturantes e bolorentos, odeiam-nos os deuses.* Eu olhava minhas unhas sujas de terra, sem conseguir estender as mãos para apanhar aquele bordado com ramos de trigo nos quatro cantos, que prometi a Raul terminar hoje.

Estendia as mãos mas, antes de apanhar o pano, via a terra das unhas, então lembrava de Raul, da promessa feita. Acho que de repente fiquei espantada por estar exatamente aqui, entre todas essas pessoas, e devo ter me perguntado vagamente por que tudo em minha vida teria me conduzido para este momento, esta mesa, esses cães uivando lá fora. Não estava preocupada. Tudo que precisávamos era economizar o que restava de comida, cigarros, papel, todas essas coisas. Mas Ísis, comendo bombons sem parar enquanto Júlio fumava e Martha escrevia, parecia não compreender que ignorávamos até quando os cães permaneceriam soltos. Da sensação de estranheza e também de irritação que me veio de todos eles emergiu lenta a figura de Raul. Sabia que preparava o chá das ervas que eu colhera pela manhã, quando Marcelo foi até a cozinha contar a ele. Mas agora, depois de todos os ruídos silenciados, somente o som do piano vibrando no ar, entrecortado pelos uivos dos cães, era como se não nos importássemos com ele. Vou ver Raul, eu disse, e me afastei da mesa com o bordado inacabado nas mãos. No corredor ouvi gemidos vindos do quarto de Anaís, e qualquer coisa como um resfolegar de bicho no quarto de Marcelo. Mas não sabia se não seriam talvez os uivos dos cães, os acordes do piano ou os passos de Júlio.

Raul estava deitado no chão da cozinha. Ele sempre me lembrava um lago. Quieto feito um lago, o branco da roupa destacado contra os ladrilhos escuros. Olhava para o teto, como se não houvesse teto. Apontou o bule branco com as doze xícaras coloridas em volta, pedindo que não deixasse ninguém quebrá-las. Todos correm perigo, disse. Para tranquilizá-lo, sentei ao seu lado. Tremíamos. Pensei em colocar a cabeça dele no meu colo, tomar suas mãos, cantar, fazer carinhos. Mas só consegui ficar muito próxima. De alguma forma, eu queria dizer que tudo aquilo importava pouco. Se soubéssemos controlar a nós mesmos, ao nosso terror, e poupar o gasto exagerado de tudo que tínhamos armazenado, nada aconteceria. Amanhã, depois, dentro de uma semana, um mês, os cães morreriam e poderíamos novamente abrir a casa, sair para o sol. Lera um dia em algum lugar que a raiva corroi aos poucos aos poucos o cérebro deles. Não resistem muito. Queria dizer a Raul que pensasse no tempo que fatalmente passaria, como sempre passa.

O que hoje é drama, sempre, amanhã estará quieto na memória. A casa, ele disse, a casa. Em seguida: o que vai ser de nós? Está tudo bem, tentei dizer, tudo bem. Mas com um martelo na mão Arthur segurou meu braço, forçando-me a levantar. Com tanta violência que o pano bordado caiu sobre o rosto de Raul.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Segundo fragmento da décima terceira voz

Talvez não consiga. Ela acaba de chamar outra vez, pedindo que eu vá. Ela ainda não aprendeu a ser sozinha uma pessoa. Estou esperando por ele, eu disse. Eu não o conheço. Estou contando a história deles, como te disse naquela tarde, quando me convidaste para ir ao cinema. Preciso ter cuidado com seu nascimento, expliquei. Como uma pequena cadela prenhe, são fetos delicados estes. Mas só sabias dançar, pouco entendes dessas histórias inventadas. Requintadas, talvez banais. Espera, está ficando ainda mais obscuro. Tenta de outro jeito. Cronológico, quem sabe? Pode ser, pode ser. Tento: a casa, o rio, o piano, está bem assim? Porque eles queriam nascer, eu voltei na manhã seguinte para a Grande Cidade Vazia. O cimento das avenidas da Grande Cidade Vazia cheio somente de serpentinas, restos de confete, preservativos esporrados, trapos de cetim, flores de plástico, garrafas quebradas, máscaras partidas, pontas de cigarro, latas de cerveja. Fomos avançando pelo meio do lixo da alegria. Era de manhã. Ele me deixou na porta. Então comecei.

II. MARCELO

Acabei de me masturbar. Não lavo as mãos para começar a escrever. O esperma vai manchando a folha, misturado às gotas de suor que escorrem dos pelos de meu peito. Queria saber ficar tranquilo como Linda, que se limitou a sorrir dos cães, aumentando o volume do som para erguer uma das pernas no ar, lentamente, trazendo o braço direito estendido até a frente do tronco. Queria poder espatifar copos no chão da cozinha, feito Arthur. Quem sabe apenas levantar uma das sobrancelhas, feito Martha, pedindo irônica a ele que pelo menos evite quebrar também portas e janelas, para que os cães não entrem na casa. Nada me vem pela harmonia, pela violência ou pela razão. Com sexo é que sinto.

Decidi que me masturbaria no momento em que Júlio entrou correndo para avisar que alguém havia soltado os cães. Poderia ter procurado Anaís, que sempre deixa de lado suas cartas, seus búzios, pedras e dragões para me abrir as pernas. Um pouco distraída, às vezes meio bêbada, como se não fosse eu, como se pouco importasse, tira sem pressa minha roupa, passa as mãos nas minhas costas, fecha os olhos, às vezes lambe meu pau, escancara as coxas para que eu a penetre com vontade cada vez maior de machucá-la, de fazê-la torcer-se e gritar de dor no meio do prazer. Nunca grita. Apenas suspira, não sei se gozo ou desgosto, quando ejaculo e volta a fumar, a beber, a preparar feitiços, a cantar canções vadias. Talvez por tudo isso, também porque sabia de Anaís atrás de mim, tenha corrido à cozinha para contar a Raul.

Sentado num banco, quase no escuro, ele estava debruçado sobre a mesa como se escolhesse feijões. Parecia rezar, a mão direita pousada sobre uma dessas esquisitas xícaras coloridas que Martha comprou na cidade. Antes de acender a luz, por cima de seu ombro, por baixo da camisa desbotada, eu podia ver um pedaço de carne tão branca que quase brilhava na penumbra. Quis então encostar nele, para que não gritasse, para que sentisse como uma proteção o calor do meu corpo colado às suas costas. Depois, enquanto deixasse a cabeça tombar para trás, apoiando-se contra minha barriga, eu faria com que minha mão invadisse o pano fino para beliscar-lhe o mamilo até que gemesse baixinho, repetindo meu nome. E só mais tarde, talvez, contaria dos cães, quando já estivéssemos inteiramente nus, enrolados um no outro sobre os ladrilhos frios. Tudo estava preparado. O que aconteceria já estava desenhado no ar da cozinha, bastava que eu fizesse o primeiro gesto, acompanhando o esboço de um desenho pronto. Foi quando uma voz que me pareceu a de Ísis gritou ao longe e, sem planejar, meu dedo apertou o botão da luz. Coloquei a mão no ombro dele. Apertei forte. E repeti exatamente o que Júlio me dissera há pouco: soltaram os cachorros loucos.

Não queria assustá-lo. Mas Raul ergueu-se brusco, derrubando o banco, olhando para mim como se não acreditasse. Com aquela luz dura derramada sobre a cara dele, eu via suas pupilas crescendo para invadir o azul desbotado da íris. Talvez porque meus olhos estivessem acostumados à sombra, como num desses truques de parque de diversões onde mulheres se transformam pouco a pouco em feras, de repente vi nossos doze rostos, um a um, sobrepondo-se ao rosto dele, inclusive o meu. Quando seus ossos um tanto arredondados ganharam os contornos vagos do rostos de Anaís, estendi a mão e puxei-o para mim. Tinha cheiro de ervas verdes. O cheiro de ervas verdes do corpo de Raul misturou-se ao cheiro de suor do meu próprio corpo. Eu tinha estado o dia inteiro na horta, sem camisa, embaixo do sol. Eu trazia no bolso o primeiro tomate maduro. Com uma das mãos, forcei meu amigo a ficar de frente para mim, muito próximo. Com a outra, tirei do bolso o tomate maduro. Ele me olhava sem compreender. Ouvi um dos cães uivando, perto do poço, pensei, e antes que o uivo terminasse e o outro cão começasse então a uivar, entre talvez o primeiro e o segundo uivos mordi muitas vezes a boca dele, interrompendo-me apenas para repetir que estávamos perdidos.

Então senti uma presença macia às nossas costas. Me voltei rápido, ainda a tempo de perceber as fitas das sandálias de Anaís afastando-se leves para não serem vistas. Empurrei Raul contra a mesa. Corri para o quarto. Foi tudo sôfrego, urgente. Tentei me concentrar somente em um corpo, um rosto, um sexo, mas os doze sobrepunham-se, inclusive o meu, sem ordem, no ritmo do gesto sem controle. Agora sinto os pelos melados entre as coxas, na barriga, o leite branco no umbigo. Provo esse meu gosto espesso, adocicado. Depois o misturo - com nojo, com alegria, com fome também - aos grãos maduros do tomate que acabo de morder.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Primeiro fragmento da décima terceira voz

O tom, o problema é o tom. A tua mão está débil. Parece que não ousas. Espera um pouco, certa paciência. Quem sabe se eu explicasse como me veio, ajudaria? Mas ajudaria a quem, a que? Não me pergunta ainda, só depois talvez quase saberei. É que o tom, eu te falava do tom. Sei, mas lá o tom, maldição, era exatamente esse. Mas assim... diluído? Assim contido? Espera: havia o ria, depois o mato. Foi entre o rio e o mato que me veio. Da casa chegavam uns acordes obsessivos de piano. E da memória, juntos, me brotaram uns versos falando nos cães. Não éramos doze, aquelas pessoas não me interessavam. Eu não as amaria, elas nunca me amariam, a não ser estonteadamente, por levezas, distrações. Eram outras. Era carnaval, pleno carnaval. Eu precisava voltar, elas queriam nascer, eu não as conhecia. Sabia apenas que estavam cercadas, que eram doze, que havia um rio, um mato, um piano tocando sem parar dentro da casa branca. No início da noite, no fim do verão.

I. RAUL

Alecrim, artemísia, absinto, boldo, manjericão, verbena, camomila: eu estava na cozinha fazendo chá de ervas do campo quando soltaram os cachorros loucos. Gostava de misturá-las assim, as ervas, um pouco ao acaso, deixando a água esquentar enquanto as macerava devagar no pote de cerâmica. Tinha começado a noitecer, mas ninguém lembrara ainda de acender as luzes. Talvez porque ficasse tudo mais calmo, mais bonito, quase perfeito: aquela meia penumbra avermelhada, o som do piano vindo da sala, as vozes caladas, as ervas verdes sobre a madeira da mesa. Agora, horas depois, minhas mãos continuam a guardar o cheiro fresco do capim-cidró que Marília colheu pela manhã tomando cuidado para que a lâmina afiada das folhas não lhe cortasse os dedos. Se ficar bem atento, conseguirei localizar sob as unhas remotos vestígios do perfume da hortelã, do funcho, misturados ao cheiro ardido da arruda no galhinho colocado atrás da orelha para afugentar maus espíritos.

Rindo de exorcismos, galhos, pedras, velas, incensos: os maus espíritos estão soltos, imunes aos axés, e não consigo ficar atento a mais nada além dos passos e dos uivos dos cães rondando a casa. A todo instante lembro de quando ainda estava tudo em aparente paz: as ervas sobre a mesa, a chaleira de ferro no fogo, o bule esmaltado de branco com as doze xícaras de cores diferentes dispostas em volta. Eu acompanhava com a cabeça a música vinda da sala, ao mesmo tempo em que esmagava as ervas para jogá-las dentro do bule. Esperando a água chiar, determinava com cuidado, e para sempre, a cor da xícara de cada um de nós, colocando-as em círculo ao redor do bule.
Assim:
Escolhi a vermelha para Arthur, que dá ordens, prega pregos, corta fios e sem parar faz coisas pela casa. Separei a azul-celeste para Ísis, azul no tom exato de sua voz aguda quando canta, cristal retinindo na luz. Determinei que a verde mais clara pertenceria a Júlio, que se enreda em palavras, movimentos, e me parece - pelo menos agora, em plena noite - que o movimento tem exatamente essa cor, sobretudo às três horas das tardes de sol quente. Hesitei um pouco até encontrar minha própria cor, mas acabei escolhendo o branco, não só porque assim me visto sempre, mas também porque é meu ofício fazer coisas brancas, preparar os chás, assar os pães, lavar a louça. Para Ricardo, cujos cabelos claros às vezes brilham, ouro, com uma inspiração separei certeiro a amarela. Não tive dúvidas ao destinar a Martha, que tira a poeira da casa e lava o chão, a xícara verde-escuro. Para Linda, por sua dança de meneios harmoniosos, mansas curvaturas, separei a cor-de-rosa. Quando pensei nas sobrancelhas cerradas de Marcelo, imediatamente tomei a cor de vinho tinto, paixões, intensidades. Pedro, o que nos faz rir quando não está lendo ou caminhando sozinho pelo mato com seus Oxóssis, ficará com a laranja. Por gostar de terra, por nunca usar cores, Marília ganhou marrom. Restavam duas: a azul-marinho, cor do céu noturno, seria de Virgínia, para ajudá-la a decifrar as estrelas quando se embaçarem nas quadraturas. A roxa pertenceria a Anaís. São dessa cor os sonhos e premonições que costuma ter, os licores que prepara, o esmalte de suas unhas, os panos que a cercam.

Como um pequeno zodíaco, doze xícaras em volta do bule. Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu. Abracadabras, shazams. Talvez não fossem necessárias, porque eu estava carregado de amor por nós todos.

Falo banalidades, sei, mas amor é magia, condão, pedra de toque - embora o pressentimento da teia escura se armando sobre nossas cabeças. Seria quem sabe o vermelho vivo do poente, tudo parado, nenhum vento na copa das árvores, a noite chegando do outro lado do mundo, o verão no fim. Sem que eu quisesse, meu pensamento voltava-se involuntariamente para a xícara cor de vinho tinto. As notas do piano enleavam meu corpo em fios sonolentos. Eu deveria rir ou bocejar, suspenso à beira do sono, quando Ísis gritou ao longe, a chaleira ferveu e Marcelo entrou. Ele colocou a mão no meu ombro, apertou forte e disse que tinham soltado os cachorros loucos.

Dodecaedro
Triângulo das águas
Caio Fernando Abreu



Uma flor num buraco de calçada

quando soltaram os cachorros loucos
eu estava fazendo chá
de ervas do campo
e de repente o espanto
tremendo a chaleira
e bombeando medo

larguei as ervas e danado
precipitei-me à janela
de onde vi
enormes matilhas
com olhos cheios de negra espuma

a espuma invadia a rua
e abraçava postes, que caíam
cheios de óleo e náusea
engolia as pessoas
que alucinadas
enchiam o ar de berros

depois os cachorros foram embora
eu voltei ao meu chá
e lá fora a solidão
e uma flor quase despercebida

Henrique do Valle

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Valério

Na verdade, era meu desejo comunicar a uma alta sociedade que acabam de chegar os dois autômatos mundialmente famosos e que talvez eu seja o terceiro e mais esquisito deles, isto é, se eu mesmo soubesse quem sou, quem eu seria, o que aliás não deve provocar espanto, já que eu mesmo não sei disso que estou falando, não sei mesmo que não o sei, razão pela qual é muito provável que me deixem falando assim, e, aliás, não devem ser mais do que apitos e assobios que dizem tudo isto. (Com pronúncia confusa.) Senhores e senhoras, aqui vedes duas pessoas de sexos opostos, um homenzinho e u'a mulherzinha, um senhor e uma senhora. Nada mais do que arte e mecanismo, nada mais que bonecos de papelão ou molas de relógio! Cada um deles tem u'a mola fina, finíssima, feita de rubi, sob a unha do dedinho menor do pé direito. Basta apertar um pouquinho e o mecanismo anda cinquenta anos completos. Estas pessoas estão tão bem trabalhadas que não poderiam ser diferenciadas de outras, caso não soubéssemos que são apenas de papelão. Aliás, poderíamos torná-las integrantes da sociedade humana. São muito nobres, já que falam o melhor vernáculo. São muito morais, já que acordam com o bater do relógio, almoçam ao meio-dia com o bater do relógio e com o bater do relógio vão para a cama. Têm também uma bela digestão, o que prova estarem com a consciência tranquila. Têm ainda um sentimento ético, pois que a dama não conhece a palavra pela qual eu nomeio o conceito de calcinhas e ao cavalheiro jamais ocorreria a idéia de subir as escadas atrás de u'a mulher ou descê-las à sua frente. São muito cultos, pois a dama canta todas as óperas mais recentes e o cavalheiro usa abotoaduras. Cuidado, senhoras e senhores, pois que agora atingiram um estágio interessante: começa a manifestar-se o mecanismo do amor. Já por diversas vezes o cavalheiro apanhou o xale da dama e esta, diversas vezes, já revirou os olhos em direção aos céus. Ambos já murmuraram diversas vezes as palavras crença, amor, esperança! Ambos parecem estar inteiramente de acordo, faltando-lhes apenas aquela palavrinha: amém.

Leonce e Lena
Georg Büchner

domingo, 29 de abril de 2012

Uma volta com Héctor Abad

Caminhei bastante sob o sol. Gosto de conhecer as cidades caminhando. Mas Brasília me disseram que não se pode conhecer caminhando. Está ao alcance do poder, dos helicópteros, dos automóveis, mas não está ao alcance das minhas pernas. Me pareceu muito estranho que em toda a esplanada eu não pude encontrar nenhum café, nenhum bar, nenhuma sombra.

Impressão estranha.

Os edifícios grandes, que em qualquer lugar do mundo seriam grandes, em Brasília se tornam pequenos. Porque tudo é grande.

Então Brasília não se nutre de uma evolução, porque evolução consiste em adaptar-se e Brasília não pode.  É uma cidade açoitada, artificial em muitos sentidos. É um bloco rígido. As pessoas, como se sentem?













As dimensões são tão grandes.
Telma Candice

domingo, 22 de abril de 2012

A traição da cidade

Eu queria ser bem poética ao falar da minha cidade com vocês. Gostaria de falar do céu, do cerrado, dos monumentos modernistas de Oscar Niemeyer, dos azulejos vívidos de Athos Bulcão espalhados pelas paredes, do formato de avião etc. Coisas que nós, os próprios moradores daqui, por costume, tradição ou qualquer coisa que o valha, dizem para quem é de fora na intenção nada mascarada de enfeitiçar os tais, fazer com que estes invejem nosso modo de viver organizado, nossa opção por quadras, nossos comércios, a estranheza elegante da nossa falta de esquinas e nosso orgulho em dizer que aqui é impossível se perder a partir do momento em que se entende a lógica dos números.

Há vinte anos, ou melhor, há vinte e dois anos que eu moro aqui e ainda não entendi a lógica dos números. Aliás, não entendo a lógica do por que dos números... Deve ser por isso que vivo me perdendo.

Hoje eu passei pela ponte JK por volta de umas quatro da tarde e os raios de sol batendo no lago embaixo de mim me fizeram pensar que talvez eu pudesse parar de me preocupar, só por um minuto, com o que quer que estivesse me preocupando; que eu poderia agir como turista por um dia e pensar que aquela ponte era, na verdade, a Ponte San Francisco, na Califórnia, ou a Ponte da Arrábida, em Portugal, ou sei lá, qualquer ponte que fosse outra além desta em pauta ou da Ponte Rio-Niterói (passar do ruim pro pior ainda é ironia demais para um destino tão singelo quanto o meu).
Neste momento, meu cachorro, Horácio, que estava no banco de trás, vomitou. Eu pensei, então: "é, não é porque está bonito que está tudo certo".

Eu não sei como é com o cachorro de vocês, mas quando o meu vomita, é sinal de que alguma catástrofe está por vir.

Da série: Brasília, você não cumpre suas promessas.

Ou,

da série: detestamos sentimentalismo e amamos cachorros. 

sexta-feira, 2 de março de 2012

Nick e Jordan

- Você guia pessimamente - protestei. - Você deve ter mais cuidado, ou então deixar inteiramente de guiar.
- Eu sou cuidadosa.
- Não é.
- Bem, as outras o são - disse ela, despreocupadamente.
- Que é que isto tem a ver com o caso?
- Elas saem do meu caminho. É preciso que haja duas pessoas para que ocorra um acidente.
- Suponhamos que você depare com alguém tão descuidado quanto você.
- Espero que isso jamais aconteça - respondeu ela. - Detesto gente descuidada. Por isso é que gosto de você.

Seus olhos cinzentos, um tanto contraídos, fitavam o caminho, mas ela havia, deliberadamente, modificado o caráter de nossas relações - e, por um momento, julguei que a amava. Mas sou um sujeito de raciocínio lento e cheio de regras interiores que agem como freios sobre os meus desejos - e eu sabia que primeiro teria de desembaraçar-me completamente, quando voltasse para casa, da complicação em que me achava. Eu vinha escrevendo, uma vez por semana, cartas que terminavam assim: "Com amor, Nick" - e só o que eu conseguia pensar era no leve bigode de transpiração que aparecia sobre o lábio superior de uma certa garota, quando ela jogava tênis. Não obstante, havia entre nós um vago entendimento, que precisaria ser rompido com tato, antes que eu pudesse sentir-me livre.

Cada um de nós desconfia que possui pelo menos uma das virtudes cardinais - e a minha é esta: sou uma das poucas criaturas honestas que jamais conheci.


O grande Gatsby
F. Scott Fitzgerald

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A marca na parede

Foi talvez em meados de janeiro deste ano que olhei pela primeira vez para cima e vi a marca na parede. Para fixar uma data é preciso lembrar o que se viu. Por isso eu penso agora no fogo; no inalterável véu de luz amarela sobre a página do meu livro; nos três crisântemos na jarra de vidro redonda na lareira. Sim, deve ter sido no inverno, e tínhamos acabado de terminar nosso chá, pois lembro que eu estava fumando quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira vez. Olhei para cima, através da fumaça do cigarro, e meu olhar foi alojar-se por um momento nas brasas, e aquela velha fantasia da bandeira carmesim tremulando na torre de um castelo me veio à mente, e pensei no cortejo de cavaleiros vermelhos subindo pelo penhasco negro. Mas, ´para meu alívio,a fantasia foi interrompida pela visão da marca, porque é uma fantasia antiga, uma fantasia automática, constituída talvez na infância. A marca, negra na parede branca, era pequena e arredondada, a uns quinze centímetros acima do parapeito da lareira.

Quão de pronto nossos pensamentos se atiram a um novo objeto, erguendo-o por um pouco, assim como formigas que carregam febrilmente uma lasca de palha e depois a abandonam... Se a marca fosse de prego, não devia ter sido para quadro, só podia ser para miniatura - a miniatura de uma dama de cachos empoados de branco, faces empoadas de creme e lábios como cravos vermelhos. Uma fraude decerto, pois as pessoas que moraram nesta casa antes de nós teriam escolhido quadros assim - para um cômodo antigo, um quadro antigo. Eis o tipo de pessoas que eram - pessoas muito interessantes, e é tão frequente eu pensar nelas, nesses lugares tão estranhos, porque nunca voltaremos a vê-las, nunca saberemos o que aconteceu a seguir. Pretendiam sair desta casa porque queriam mudar o estilo dos móveis, assim disse ele, e estava em processo de dizer que em sua opinião a arte deveria ter idéias por trás quando fomos separados à força, como somos separados da velha senhora que está para servir o chá e do jovem que está para atingir a bola de tênis no quintal da casa suburbana quando passamos de trem.

Mas, quanto à marca, não estou certa; não creio, afinal, que tenha sido feita por um prego; é muito grande e redonda para ser de prego. Eu poderia levantar-me, mas se o fizesse, para a olhar, é quase certo que não saberia dizer exatamente o que é; porque, uma vez feita uma coisa, ninguém nunca sabe como aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida! A inexatidão do pensamento! A ignorância da humanidade! Para mostrar como é pouquíssimo o controle que temos sobre nossas posses - sendo questão acidental que este modo devida seja afinal nossa civilização -, deixem-me enumerar apenas algumas das coisas perdidas em nosso tempo de vida, a começar por - que gato iria comer, que rato iria roer? - três caixas azuis de ferramentas para encadernação de livros, que sempre pareceu a mais misteriosa das perdas. Depois houve as gaiolas de pássaros, os aros de ferro, os patins de aço, a caixa de carvão Queen Anne, o quadro de bugigangas, o realejo - tudo se foi, e também jóias. Opalas e esmeraldas jazem em torno das raízes de nabos. Como é preciso aparar e raspar para ter certeza! Espanta é que eu tenha roupas no corpo, que me sente rodeada, neste momento, de móveis sólidos. Porque, se quisermos comparar a vida a alguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetros por hora - desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo! Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas de asfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, correio, pela calha abaixo! Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida. Sim, isso parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétua recuperação; e tão por acaso, tão a esmo...

Mas após a vida. A queda lenta dos pedúnculos verdes e grossos para que o cálice da flor, à medida que vira, banhe-nos de luz vermelha e púrpura. Por que, afinal, não se há de nascer lá como se nasce aqui, sem defesa e sem fala, incapaz de focar os olhos, agarrando-se às raízes da grama, aos pés dos Gigantes? Quanto a dizer o que são as árvores, o que são os homens e mulheres, ou se existem tais coisas, isso não estaremos em condições de fazer por cinquenta anos ou mais. Não haverá nada a não ser espaços de luz e escuridão, cruzados por pedúnculos grossos, e talvez bem altos, traços em forma de roseta de uma cor indistinta - rosas pálidos e azuis - que se tornarão, com o passar do tempo, mais definidos, mais - não sei o quê...

E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até ter sido causada por alguma coisa arredondada e preta, como uma folhinha de roseira deixada pelo verão, e não sendo eu uma dona de casa muito atenta - vejam só, por exemplo, quanta poeira em cima da lareira, a poeira que, pelo que dizem, cobriu Tróia por três vezes, apenas fragmentos de vasos negando-se obstinadamente à aniquilação, como se pode crer.

A árvore perto da janela bate de leve na vidraça... Quero pensar com calma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que passa... Shakespeare... Bem, tanto faz ele ou outro. Um homem que solidamente sentou-se numa poltrona e olhou para o fogo e assim... Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum Céu muito alto para atingir sua mente. Ele, abaixando a cabeça, apoiou a testa na mão, e os outros, olhando pela porta aberta - pois supõe-se que esta cena aconteça numa noite de verão... Mas como é enfadonha esta ficção histórica! Não me interessa em nada. Bem que eu gostaria de dar com uma linha de pensamento agradável, uma linha que indiretamente refletisse crédito em mim, pois tais são os pensamentos mais agradáveis e muito frequentes até mesmo nas mentes das modestas pessoas cor de rato, que sinceramente acreditam que não gostam de receber elogios; e essa é que é a sua beleza; são pensamento como este:

"E então entrei na sala. Eles estavam falando de botânica. Falei da flor que eu tinha visto crescendo num monte de lixo no quintal de uma casa velha em Kingsway. A semente, disse deve ter sido plantada no reinado de Carlos I. Que flores ocorriam no reinado de Carlos I?", perguntei - (mas não me lembro da resposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estou vestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo, não a adorando abertamente, pois, se o fizesse, eu deveria considerar-me em erro e esticar a mão de imediato para em autoproteção apanhar um livro. É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela. Ou isso não é, afinal de contas, tão curioso assim? É uma questão de grande importância. Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras - que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver: Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos. E os romancistas do futuro dar-se-ão cada vez mais conta da importância dessas reflexões, pois claro está que não há só um, mas sim um número quase infinto de reflexões; são essas profundidades que eles irão explorar, esses os fantasmas que perseguirão, deixando a descrição da realidade cada vez mais fora de suas histórias, já contando com um conhecimento dela, como fizeram os gregos e talvez Skakespeare - mas essas generalizações são muito inúteis. Basta o timbre militar da palavra, que lembra editoriais, ministros de gabinete - toda uma categoria de coisas que em criança tomávamos pelo que podia haver de mais sério, de mais grave, de mais importante, e das quais não se podia escapar, a não ser sob risco de inominável danação. As generalizações trazem de volta, de alguma forma, o domingo em Londres, os modos de falar de mortos, roupas, hábitos - como o hábito de se sentarem todos juntos numa sala até certa hora, embora ninguém gostasse disso. Havia uma regra para tudo. A regra para toalhas de mesa, nessa época específica, é que deveriam ser feitas em tapeçaria, com pequenos compartimentos amarelos voltados para o lado de cima, como se pode ver em fotografias dos tapetes nos corredores dos palácios reais. As toalhas de outro tipo não eram verdadeiras. Quão chocante, no entanto quão maravilhoso, descobrir que essas coisas verdadeiras, os almoços de domingo, os passeios de domingo, as casas de campo e as toalhas de mesa, não eram afinal tão verdadeiras assim, sendo de fato meio fantasmais, e que a danação que se abatia sobre quem não acreditava nelas era apenas uma impressão de liberdade ilegítima. O que agora toma o lugar dessas coisas, pergunto-me dessas coisas importantes e sérias? Talvez os homens, caso você seja mulher; o ponto de vista masculino que governa nossas vidas, que fixa o padrão, que estabelece a Ordem de Precedência de Whitaker, a qual desde a guerra se tornou meio fantasma, suponho eu, para muitos homens e mulheres, e que em breve, é lícito esperar, será motivo de riso na lata de lixo para onde vão os fantasmas, os bufês de mogno e as gravuras de Landseer, deuses e demônios, o Inferno e assim por diante, deixando-nos a todos uma impressão intoxicante de liberdade ilegítima - se existe liberdade...

Sob certas luzes essa marca na parede parece na verdade se projetar da parede. Não é perfeitamente circular. Não posso ter certeza, mas parece lançar uma sombra perceptível, sugerindo que, se eu corresse o dedo para baixo, naquela faixa da parede, a um certo ponto ele iria subir e descer por um montículo, liso como os de South Downs, que ou bem são túmulos, segundo dizem, ou bem, acampamentos. Dos dois, eu preferiria que fossem túmulos, desejando a melancolia, como a maioria dos ingleses, e achando natural, ao fim de uma caminhada, pensar nos ossos esticados que há embaixo da terra... Deve haver algum livro sobre isso. Algum antiquário deve ter escavado essas ossadas, dando-lhes depois um nome... Que espécie de homem, pergunto-me é um antiquário? A maioria é de coronéis reformados, creio eu, guiando grupos de trabalhadores idosos até o cume, examinando torrões e pedras e correspondendo-se com o clero das redondezas, o qual lhes dá, já estando aberto à hora do desjejum, um sentimento de importância, e a comparação de pontas de flechas necessita de longas viagens às cidades da região, necessidade agradável tanto para eles quanto para suas velhas esposas, que querem fazer uma geleia de ameixa, ou uma faxina no escritório, e têm todas as razões para manter essa grande questão de acampamento ou túmulo em suspensão perpétua, enquanto o próprio coronel sente-se satisfatoriamente filosófico ao acumular evidências sobre os dois lados da questão. É verdade que ele finalmente se inclina a crer no acampamento; e, quando se opõem à sua hipótese, redige um panfleto que está a ponto de ler na reunião trimestral da sociedade local quando um infarto o derruba, e seus últimos pensamentos conscientes não se reportam a mulher nem aos filhos, mas ao acampamento e àquela ponta de flecha, que agora está na vitrine do museu da cidade, junto com o pé de uma assassina chinesa, um punhado de pregos elizabetanos, muitos cachimbos de barro Tudor, um fragmento de cerâmica romana e o copo em que Nelson bebeu vinho - provando realmente não sei o quê.

Não, não, nada é provado, nada é sabido. E se eu me levantasse, nesta exato momento, e me certificasse de que a marca na parede é na verdade - como devo dizer? - a cabeça de um velho prego gigante, cravado ali há uns duzentos anos e que agora, devido ao paciente atrito causado por muitas gerações de faxineiras, apontou a cabeça por cima das camadas de tinta para dar sua primeira olhada na vida moderna, captando-a numa sala onde as paredes são brancas e a lareira está acesa, o que eu ganharia? Conhecimento? Tema para especulação posterior? Quer em pé, quer sentada sem me mexer, eu sou capaz de pensar. E o que é conhecimento? O são nossos homens de saber senão descendentes de bruxas e eremitas que se acocoravam em grutas e nas matas preparando suas beberagens de ervas, interrogando musaranhos e anotando a linguagem de estrelas? E quanto menos os respeitamos, à medida que nossas superstições se reduzem e aumenta nosso respeito pela beleza e saúde mental... Sim, poder-se-ia imaginar um mundo muito agradável. Um tranquilo mundo espaçoso, com flores bem azuis e vermelhas pelos descampados. Um mundo sem professores, sem especialistas, sem zeladores com perfis de polícia, um mundo em que se pudesse cortar com o pensamento como um peixe corta a água com suas nadadeiras, roçando em talos de nenúfares que pendem suspensos sobre ninhos de ovos brancos do mar... Como é tranquilo aqui embaixo, enraizado no centro do mundo e olhando para cima pelo acinzentado das águas, com seus repentinos fachos de luz, com seus reflexos - ah, se não fosse o Almanaque de Whitaker - se não fosse a Ordem de Precedência!

Tenho de me levantar para ir ver em pessoas o que é realmente esta marca na parede - um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?

Aqui está mais uma vez a Natureza em seu velho jogo de autopreservação. Esta linha de pensamento, percebe ela, ameaça tornar-se pura perda de energia, ameaça até mesmo colidir com a realidade, pois quem jamais será capaz de pôr um dedo em riste contra a Ordem de Precedência de Whitaker? O arcebispo de Canterbury é seguido pelo presidente da Câmara dos Pares; o presidente da Câmara dos Pares é seguido pelo arcebispo de York. Todo mundo segue alguém, tal é a filosofia de Whitaker; e a grande coisa é saber quem segue quem. Whitaker saber, e você que se console com isso, como a Natureza aconselha, ao invés de enraivar-se; mas, se você não puder ser consolada, se tiver de estragar esta de paz, pense então na marca na parede.

Entendo o jogo da Natureza - sua prontidão para agir como modo de interromper qualquer pensamento que ameace agitar ou causar dor. Daí provém, suponho, nosso leve desprezo pelos homens de ação - homens, presumimos, que não pensam. Seja como for, não faz mal ficar olhando uma marca na parede para pôr um ponto final em nossos desagradáveis pensamentos.

De fato, agora que fixei o olhar nela, sinto que me agarrei a uma tábua de salvação; tenho uma satisfatória noção de realidade que de uma vez por todas transforma os dois arcebispos e os presidente da Câmara dos Pares em meras sombras. Eis aqui alguma coisa concreta, definida. Assim, despertando de um sonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantém quiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade, adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua. É disso que queremos estar seguros... A madeira é uma boa coisa na qual pensar. Vem de uma árvore; e as árvores crescem, e não sabemos como crescem. Por anos e anos elas crescem, sem nos dar nenhuma atenção, em campinas, em florestas e à beira dos rios - coisas nas quais, sem exceção, nós gostamos de pensar. As vacas dão chicotadas com o rabo, à sombra delas, nas tardes quentes; elas pintam tão de verde os rios que, quando um frango-d'água mergulha, esperamos vê-los com as penas todas verdes quando volta à tona. Gosto de pensar nos peixes que balançam contra a correnteza como bandeiras ao vento; e nos besouros-d'água que lentamente vão erguendo domos de lama sobre o leito do rio. Gosto de pensar na árvore em si: primeiro na íntima e seca sensação de ser madeira; depois na trituração pela tempestade; depois na lenta, deliciosa penetração de seiva. Gosto de pensar nisso também nas noites de inverno, quando me ergo no campo vazio com as folhas dobradas, fechando-me sem nada expor de sensível aos projéteis de ferro que vêm da lua, um mastro nu na terra que não pára, ao longo de toda noite, de rodopiar. O canto dos passarinhos deve soar muito alto e estranho em junho; e que frio devem sentir nos pés os insetos, quando fazem seus laboriosos avanços, subindo pelas rugas da casca, ou tomam sol sobre o toldo verde e fino das folhas, olhando reto para a frente com seus olhos vermelhos, cortados em forma de diamante... Uma a uma as fibras estalam sob a imensa pressão fria da terra e vem então o temporal mais recente e os galhos mais altos, caindo, cravam-se na terra de novo, e fundo. Nem assim a vida acaba; para uma árvore, ainda há de dormir, em barcos, no assoalho, forrando salas onde homens e mulheres sentam-se depois do chá para fumar seus cigarros. Está cheia de pensamentos tranquilos, de pensamentos felizes, esta árvore. Bem que eu gostaria de pegar cada um deles separadamente - mas alguma coisa está atrapalhando. Onde é que eu estava? De que é mesmo que se tratava? Uma árvore? Um rio? A região dos Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos de asfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo está se movendo, caindo, deslizando, sumindo... Há uma vasta sublevação da matéria. Alguém está de pé, acima de mim, e diz:

"Vou sair um instante para comprar um jornal."
"Hein?"
"Se bem que nem adianta comprar jornais... Nunca acontece nada. Maldita guerra; que Deus maldiga esta guerra!... Seja como for, não vejo por que tínhamos de terum caramujo na parede."

Ah, a marca na parede! Era um caramujo.

Virginia Woolf

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Uma insólita viagem à subjetividade - fronteiras com a ética e a cultura

Tem início aqui uma inusitada viagem ao mundo da subjetividade. Uma especial curiosidade em conhecer suas regiões fronteiriças com a ética e a cultura estará nos direcionando ao longo das sete etapas desta aventura.

Primeira etapa. Ainda estamos um tanto distraídos. Por ora, o que vislumbramos da subjetividade é o perfil de um modo de ser - de pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc. - que recorta o espaço, formando um interior e um exterior. Nosso olhar desatento vê na pele que traça este perfil uma superfície compacta e uma certa quietude. Isso nos faz pensar que este perfil é imutável, assim como o interior e o exterior que ele separa. Não vale a pena nos demorarmos nesta visão mais banal. Passemos imediatamente para uma segunda etapa de nossa viagem.

Aqui convocaremos, de nosso olho, uma certa potencialidade que qualificarei de "vibrátil", que faz com que o olho seja tocado pela força do que vê. Sem muita dificuldade, logo notamos que a densidade desta pele é ilusória e efêmero é o perfil que ela envolve e delineia. A pele é um tecido vivo e móvel, feito das forças/fluxos que compõem os meios variáveis que habitam a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político, cultural, informático, turístico, etc. Como estes meios, além de variarem ao longo do tempo, fazem entre si diferentes combinações, outras forças entram constantemente em jôgo, que vão misturar-se às já existentes, numa dinâmica incessante de atração e repulsa. Formam-se na pele constelações as mais diversas que vão se acumulando até que um diagrama inusitado de relações de força se configure. Nesse momento, nosso olho vibrátil capta na pele uma certa inquietação, como se algo estivesse fora do lugar ou de foco. A esta altura de nossa viagem, não conseguimos saber muito mais do que isso. Passemos então para uma terceira etapa.

Aqui, recorreremos a um artifício um tanto insólito: vamos estender a pele, desfazendo o perfil que ela desenha, de modo a transformá-la numa superfície plana. O que nosso olho vibrátil presencia então é a pele começando a reagir ao incômodo causado pelo novo diagrama: ela se dobra, fazendo uma espécie de curvatura. Surpresos, vemos emergir no interior desta dobra, o cenário de todo um modo de existência. É como se o diagrama que dá à pele sua atual tessitura, tivesse se corporificado num microuniverso. Reencontramos aqui um perfil de subjetividade, porém ele não é o mesmo que víamos no comêço. Fascinados, resolvemos não seguir adiante e nos demorarmos mais tempo nessa etapa de nossa viagem.

O que logo observamos é que outros fluxos vão entrando na composição da pele, formando outras constelações e que, aos poucos, outros diagramas de relações de força emergem e assim sucessivamente. A cada vez que um diagrama se forma, a pele se curva novamente. Nesta dinâmica, onde havia uma dobra, ela se desfaz; a pele volta a estender-se, ao mesmo tempo que se curva em outro lugar e de outro jeito; um perfil se dilui, enquanto outro se esboça. O que fica claro é que cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma determinada figura da subjetividade. Agora, sim, podemos passar para uma quarta etapa.

Aqui, examinaremos atentamente de que é feito o dentro e o fora de cada figura da subjetividade que se esboça. Diferentemente do que víamos no início antes de ativarmos o vibrátil de nosso olho, o que observamos agora é que dentro e fora não são meros espaços, separados por uma pele compacta que delineia um perfil de uma vez por todas. Percebemos que eles são indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microcosmo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile.

Um tanto perplexos, nos damos conta que o dentro, aqui, nada mais é do que o interior de uma dobra da pele. E reciprocamente, a pele, por sua vez, nada mais é do que o fora do dentro. A cada vez que um novo diagrama se compõe na pele, a figura que até então ela circunscrevia é como que puxada para fora de si mesma, a ponto de acabar se formando uma outra figura. É só neste sentido que podemos falar num dentro e num fora da subjetividade: o movimento de forças é o fora de todo e qualquer dentro, pois ele faz com que cada figura saia de si mesma e se torne outra.
O fora é um "sempre outro do dentro", seu devir.

Definitivamente, fora e dentro na atual etapa de nossa viagem não tem mais nada a ver com meros espaços. Pelo contrário: o fora é uma nascente de linhas de tempo que se fazem ao sabor do acaso. Cada linha de tempo que se lança é uma dobra que se concretiza e se espacializa num território de existência, seu dentro. No entanto, nenhuma concretização, nenhuma espacialização tem o poder de estancar a nascente; outras linhas de tempo vão se engendrando na pele deste dentro que acabarão por desfazê-lo. Cada figura e seu dentro dura tanto quanto a linha de tempo que a desenhou: diversos são os microuniversos possíveis, tantos quantas são as linhas de tempo.

Ao que parece, conseguimos avançar um pouco na apreensão da indissociabilidade inconciliável entre o fora e o dentro: o fora/nascente, este plano das forças, é ilimitado; enquanto que os dentros que se concretizam ou espacializam em territórios de existência são sempre finitos. Do jeito que estamos vendo as coisas, até parece que esse processo flui como água corrente - uma visão sem dúvida um tanto simplista. Temos que tentar ir mais longe e examinar quando, quanto e de que modo este processo flui de fato. É hora de passarmos para nossa quinta etapa.

Aqui, abandonaremos nosso artifício; soltaremos a pele. É que para explorar o que nos interessa nesse momento não é conveniente mantê-la distendida; pelo contrário, precisamos acompanhar a pele traçando ao vivo o contorno de diferentes figuras da subjetividade. Em compensação, teremos que refinar mais ainda a vibratibilidade de nosso olho, para captarmos com a maior acuidade possível os cenários que com certeza veremos emergir.

O que percebemos de imediato é que as coisas se complicam um pouco. Em certas subjetividades o processo de formação e dissolução de figuras parece fluir mais do que em outras - a subjetividade do artista é um exemplo disto. Notamos que efetivamente os grandes criadores culturais, seja qual for o âmbito de sua produção, tendem a ser especialmente capazes de suportar a vertigem da desestabilização provocada por uma relação de forças inusitada - aquela inquietação que há pouco víamos agitar a pele, como se algo estivesse fora do lugar. Especialmente capazes também de fazer uma dobra impulsionada por este novo diagrama, como se sua pele reagisse mais rapidamente do que as demais ao desassossêgo que ele provoca. É na obra que o artista materializa o diagrama que sente vibrar em sua pele, sem por isso corporificá-lo necessariamente em alguma nova figura de sua subjetividade, a qual diga-se de passagem pode ser das mais travadas.

Ao que parece é primeiro em microuniversos culturais e artísticos que relações de força inéditas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor. Estes microuniversos constituem cartografias - musicais, visuais, cinematográficas, teatrais, arquitetônicas, literárias, filosóficas, etc. - do ambiente sensível instaurado pelo novo diagrama. Tais cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas desconhecidas paisagens.

Pausa: ao que tudo indica, acabamos de topar com uma confluência das paisagens da subjetividade e da cultura. Existem certamente outras, mas o que já podemos vislumbrar é que quando uma dobra se faz e, junto com ela, a criação de um mundo, não é apenas um perfil subjetivo que se delineia, mas também e indissociavelmente, um perfil cultural. Não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil. A rigor, é impossível dissociar estas paisagens. Fim da pausa. Passemos para uma sexta etapa de nossa viagem.

Aqui, retomaremos o que estávamos explorando: quando, quanto e como fluem os processos de formação e desmanchamento de figuras. É evidente que não existem apenas subjetividades artistas; o que observamos é que este processo não flui sempre assim tão facilmente. Pelo contrário, o mais comum é ele interromper-se em vários pontos e de várias maneiras. Chamarei de "toxicomania de identidade" a modalidade de interrupção que mais se apresenta a nosso olhar: ela prolifera cada vez mais intensamente e em qualquer ponto do planeta - independentemente de país, classe social, sexo, faixa etária, cor de pele, raça, etnia, religião, ideologia, etc. Aliás o pertencimento a cada uma destas categorias é uma oportunidade para ceder ao vício de reivindicar uma identidade - vício considerado politicamente correto, beneficiando de amplo respaldo social.

O viciado em identidade tem horror ao turbilhão das linhas de tempo em sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaçam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se: deixa vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que não ponham em risco sua suposta identidade. Através deste recalcamento da vibratibilidade da pele, ou seja, dos efeitos do fora no corpo, ele tem a ilusão de desacelerar o processo. Mas como é impossível impedir a formação de diagramas de força, o estado de estranhamento que tais diagramas provocam acaba se reinstaurando em sua subjetividade apesar da anestesia. Este homem se vê então obrigado a consumir algum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade. Algumas são suas opções.

Nos momentos em que ainda lhe resta alguma esperança de permanecer na mesma dobra, ele procura restabelecer sua ilusória identidade que os novos diagramas vieram abalar. Neste caso, apela para fórmulas mágicas de toda espécie: de anjos à cocaína, passando pelos anti-depressivos e outras mais.

Já nos momentos em que perde toda e qualquer esperança de permanecer na mesma dobra, para manter assim mesmo sua ilusão, ele toma algumas doses de "identidade prêt-à-porter". Trata-se de uma droga disponível em profusão no mercado da mídia, sob todas as formas e para todos os gostos: são as miragens de personagens globalizados, vencedores e invencíveis, envoltos por uma aura de incansável glamour, que habitam as etéreas ondas sonoras e visuais da mídia; personagens que parecem pairar acima das turbulências do vivo e da finitude de suas figuras. Mimetizando um destes personagens imaginários, ele passa a falar uma língua-jargão lotada de clichês, sem ancoragem em sensibilidade alguma, o que soa especialmente fake quando se trata de um repertório com uma certa sofisticação intelectual. Obviamente ele nunca chega lá, já que lá é uma miragem. E quanto mais se frustra, mais corre atrás; e quanto mais desorientado, estressado, ansioso, perseguido, culpado, deprimido, em pânico, mais ele se droga. Um círculo vicioso infernal.

Ufa, aqui a paisagem escureceu sensivelmente; o ar ficou tão carregado que mal se consegue respirar. É como se a vida estivesse definhando. Coloca-se então uma questão ética: a potência criadora da vida encontra-se em perigo.

Novamente, uma pausa. Agora parece que topamos com a segunda confluência que buscávamos, uma região onde as paisagens da subjetividade e da ética se encontram. Mas que território identifiquei como sendo o da ética? O território formado pela relação que cada indivíduo estabelece com a irremediável inconciliabilidade entre o ilimitado movimento de forças formando diagramas e a finitude dos mundos ditados por cada um deles. Por não ser possível superá-la, tal inconciliabilidade define nossa condição como trágica - existe um mal-estar que nada pode fazer ceder, já que ele é a sensação provocada pela desestabilização daquilo que somos, sensação de nossa finitude. A experiência da desestabilização, reiteradamente repetida ao longo de toda nossa existência, é efeito de um processo que nunca pára e que faz da subjetividade "um sempre outro", "um si e não si ao mesmo tempo". Mas o que isto tem a ver com ética? É que o quanto a vida pode fluir e afirmar-se em sua potência criadora, depende antes de mais nada da relação que se estabelece com o trágico, como se reage ao mal-estar a cada momento de nossa existência. Fecha a pausa. Passemos para a sétima e última etapa de nossa viagem.

Há muitas maneiras de se lidar com o trágico no vasto terreno da produção cultural. Numa das pontas percebemos uma negação significativa do trágico. É quando se acredita que dentro é um espaço dado cujo equilíbrio poderá ser encontrado, bastando para isso alguns truques; e no dia em que se conseguir esta proeza se terá a felicidade de ficar bovinamente instalado neste dentro para sempre.

Esta visão das coisas lembra aquela primeira etapa de nossa viagem, quando a vibratilidade do olho ainda não tinha se ativado e só dispunhamos de uma visão desatenta, pautada no senso-comum. Agora, inclusive, dá para entender porque rapidamente abandonamos aquela primeira etapa. É que é da perspectiva de uma subjetividade viciada em identidade, a qual tende a fechar-se em sua dobra, que se reduz fora e dentro a uma visão espacial - como é o caso neste pólo de negação do trágico. Esta concepção toxicômana não permite pensar a produção do novo. Me explico: se a subjetividade é simplesmente um espaço interno, formando com sua exterioridade um par de opostos numa relação de causalidade - na melhor das hipóteses, dialética -, tudo está dado desde sempre e para sempre, e não há como pensar a mudança. Mais impossível ainda pensá-la, se considerarmos que só temos acesso à exterioridade, através da projeção de um mundo interno, espécie de filme rodado com as fantasias de nossa primeira infância, que nunca pararíamos de projetar - como reza uma das versões psicanalíticas marcada por esta perspectiva espacial. Tal concepção baseia-se nitidamente numa domesticação dos efeitos das forças do fora na pele: anula-se o estado de estranhamento provocado pela condição de desconhecido de seus diagramas; neutralizam-se assim seus efeitos disruptivos. Definitivamente, esta posição é muito comprometedora do ponto de vista ético.

Já na outra ponta do terreno da produção cultural, estão as tentativas de aliar-se com as forças da processualidade: identificar os pontos de desestabilização das formas instituídas, anunciadores de sua finitude e do engendramento de outras formas. Esta aliança depende - mais do que de qualquer outro tipo de aprendizado - de estar à escuta do mal-estar mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da capacidade de suportá-lo e improvisar formas que dêem sentido e valor àquilo que esta incômoda sensação nos sopra. Aqui não se trata mais de alucinar um dentro para sempre feliz, mas sim de criar as condições para realizar a conquista de uma certa serenidade no sempre devir outro. Nesta empreitada, é imprescindível estarmos antenados com a produção cultural, para nos prover de recursos cartográficos que nos ajudem a inventar formas mais de acordo com o que os novos diagramas nos exigem. Senão nossas cartografias correm o risco de passar ao largo das mudanças já ocorridas na paisagem subjetiva contemporânea. O efeito provável de uma tal atitude seria o de interromper o fluxo, impedindo que novas correlações de forças encontrem vias de concretização.

Um último comentário. Aqui chegamos onde queríamos quando nos lançamos nesta empreitada: numa região onde se cruzam as paisagens da subjetividade, da ética e da cultura. É verdade que não é só nesta região que estas paisagens se encontram; o que importa no entanto aqui é a descoberta de que mais do que confluências propriamente ditas, o que liga estas três paisagens é uma transversalidade que promove diferentes composições de suas forças. Esta transversalidade é o oxigênio do vivo em sua versão humana. Sua quantidade é bastante variável ao longo de uma existência: de um grau quase zero, próprio do vetor "homem médio", a um grau quase máximo, próprio do vetor "subjetividade artista". Quanto mais investimos esta transversalidade, havendo-nos eticamente com o trágico e envolvendo-nos sensivelmente com a produção cultural, maior o rigor e o vigor de nossa própria produção. Encerra-se aqui nossa viagem.

Suely Rolnik