segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Valério

Na verdade, era meu desejo comunicar a uma alta sociedade que acabam de chegar os dois autômatos mundialmente famosos e que talvez eu seja o terceiro e mais esquisito deles, isto é, se eu mesmo soubesse quem sou, quem eu seria, o que aliás não deve provocar espanto, já que eu mesmo não sei disso que estou falando, não sei mesmo que não o sei, razão pela qual é muito provável que me deixem falando assim, e, aliás, não devem ser mais do que apitos e assobios que dizem tudo isto. (Com pronúncia confusa.) Senhores e senhoras, aqui vedes duas pessoas de sexos opostos, um homenzinho e u'a mulherzinha, um senhor e uma senhora. Nada mais do que arte e mecanismo, nada mais que bonecos de papelão ou molas de relógio! Cada um deles tem u'a mola fina, finíssima, feita de rubi, sob a unha do dedinho menor do pé direito. Basta apertar um pouquinho e o mecanismo anda cinquenta anos completos. Estas pessoas estão tão bem trabalhadas que não poderiam ser diferenciadas de outras, caso não soubéssemos que são apenas de papelão. Aliás, poderíamos torná-las integrantes da sociedade humana. São muito nobres, já que falam o melhor vernáculo. São muito morais, já que acordam com o bater do relógio, almoçam ao meio-dia com o bater do relógio e com o bater do relógio vão para a cama. Têm também uma bela digestão, o que prova estarem com a consciência tranquila. Têm ainda um sentimento ético, pois que a dama não conhece a palavra pela qual eu nomeio o conceito de calcinhas e ao cavalheiro jamais ocorreria a idéia de subir as escadas atrás de u'a mulher ou descê-las à sua frente. São muito cultos, pois a dama canta todas as óperas mais recentes e o cavalheiro usa abotoaduras. Cuidado, senhoras e senhores, pois que agora atingiram um estágio interessante: começa a manifestar-se o mecanismo do amor. Já por diversas vezes o cavalheiro apanhou o xale da dama e esta, diversas vezes, já revirou os olhos em direção aos céus. Ambos já murmuraram diversas vezes as palavras crença, amor, esperança! Ambos parecem estar inteiramente de acordo, faltando-lhes apenas aquela palavrinha: amém.

Leonce e Lena
Georg Büchner