quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Sétimo fragmento da décima terceira voz

A pedra morna de sol sob as minhas costas. Os garis limpam os restos da feira. Encosto a cabeça no tronco da árvore. Fecho os olhos, ofuscado pelo excesso de luz. Difícil conciliar a manhã de fora com a treva de dentro. Respirar é uma oração que nada pede, Obá humilde. Continua, já ultrapassaste o meio, não tens mais o que temer. Repara, agora é como o centro escuro da noite. O próximo movimento só pode ser em direção à luz. Ele brilhava, ele era claro, ele era feito de sol. Todos queriam não estar ali. Não se deve, não se pode querer estar em outro lugar além do que se está. Eles desejam coisas que não existem. Eles não conhecem a paixão, nem tu. A tudo isso eu chamo tontura, não prazer. Evita a vertigem. Resseca, desbasta o limite é a nudez do osso. Além dele, se avançares, há somente poeira. Mas cuidado, exigem-se os dentes fortes que Nanã perdeu. Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real. Como te atreves a supor que carregas O Facho de Luz? Sei bem quanto brilha, mas te digo que serias incapaz de vencer as Iansãs do vento. 

VII. RICARDO

Não sei se tive medo - dos cães, da noite, dos corpos - ou se apenas queria que me vissem. De alguma forma, pensava confuso que jogando luz sobre a cozinha outra vez nos olharíamos nos olhos. Parecia importante saber se a mão no meu cabelo pertencia a Pedro ou a Virgínia, se a boca contra a minha era de Júlio ou Martha e assim, pensei, também os outros. Para que soubéssemos, acho, da exata medida e intenção de cada toque em cada membro, foi que acendi a luz. Como um filme que de repente pára, todos me olharam imobilizados no que faziam. Eu era o centro móvel do que começaria a acontecer no próximo momento. Marília olhou como se procurasse censura nos meus olhos. Mas eu queria festa, não dor. Caminhei para o armário, apanhei três garrafas de vinho tinto, coloquei-as sobre a mesa. Pedro abriu-as, enquanto Martha dispunha os cálices. O disco parou. Em silêncio, eu à cabeceira da mesa, brindamos a qualquer coisa que ainda não viera. À nossa sobrevivência, quem sabe.

Mas embora o vinho, a festa tinha acabado. E não nos olhávamos nos olhos, apesar da luz. Os cães já não uivavam. Não havia mais a dança de Linda nem a canção de Ísis. O silêncio tornou-se tão denso que cada movimento precisava ser feito devagar, como se o ar pesasse à nossa volta, dificultando os gestos. Quis pensar então na minha vida antiga, mesmo uma nem muito remota, que fosse pelo menos até pouco antes do pôr-do-sol quando, ao voltar para casa, do caminho cercado de hibiscos que liga o portão de entrada à varanda, enxerguei Virgínia ajustando a luneta para observar Vênus. Não consegui lembrar mais nada. Eu não tinha passado. Acho que pensei que não tivesse talvez também futuro. Como no centro de um palco, na cabeceira da mesa, a luz batendo direto no meu rosto, o braço esquerdo caído ao longo do corpo, o direito segurando um cálice de vinho. Alonguei lentamente a coluna. Então olhei-os.

Éramos nove eremitas. Na cabeceira oposta da mesa, Raul olhava como se me tivesse transferido em segredo, em silêncio, o centro de algum poder que eu sequer adivinhava o valor. Eu preparei o chá, ele disse, você preparou o vinho: um outro e novo movimento se inicia agora. Desejei que alguém colocasse outros disco na sala, que os cães recomeçassem a uivar, que caísse de repente uma dessas tempestades violentas de verão. Nada acontecia. A tática solenidade disposta entre nós começou a pesar tanto que, como um professor ou um psicanalista, tive o impulso de olhar o relógio para dizer qualquer coisa como bem, por hoje é só. Eu não conseguia dizer nada. Desviei meus olhos dos de Raul para fixá-los num quadro pouco acima da cabeça dele: a Santa Ceia desbotada de onde Tiago Menor parecia olhar direto nos meus olhos. Outra vez me voltou à memória o caminho de hibiscos. Tirei do bolso o quadrado de papel vegetal. Ergui-o como uma hóstia, as duas mãos unidas, até que a luz batesse justamente sobre ele. Através do papel, os grãos miúdos brilhavam feito pequenos sóis.

Uma corrente de energia percorreu os outros. Júlio apressou-se a trazer o espelho. Pedro tirou da cintura o punhal marroquino. Marília acendeu a vela. Depositei na mesa o copo de vinho. Com a mão direita, abri devagar o papel sobre a palma da mão esquerda. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, soprei fortemente o pó. Flutuou por instantes no ar, depois espalhou-se sobre os móveis, pelos cantos, pelas quinas. Dissipar a névoa, sim, talvez fosse esse o meu sentido. Mas se era realmente assim, não compreendia por que, como a noite então, uma grande tristeza, neblina, começou a descer sobre mim. Eu não tinha passado algum antes do caminho de hibiscos, os cães recomeçaram a uivar, eu só queria iluminá-los, a cozinha estava muito suja, não havia futuro. Minha vida doía fundo sangrada sem saída. Tudo que eu precisava era o sol quente da manhã seguinte que não viria, aquecendo minha cabeça confusa. Cobri o rosto com as mãos e comecei a chorar.  

Sexto fragmento da décima terceira voz

Ele sabia dançar. Era bonito dançando. Mandavam sempre que repetíssemos, talvez para que os outros aprendessem a beleza. Ou mais cruéis: para que ele mesmo percebesse como eu já não conseguia dissimular o desejo de tocá-lo. Um dia, toquei. Mas sem cuidado. Como numa pirueta errada. Sem sentir, você calcula mal alguma coisa no passo e, em vez de vôo, vem a queda. O ridículo é que só no chão você percebe que caiu. Então é tarde demais. Mas havia um esboço de prazer quando nos tocávamos, na dança. E o próprio prazer, aquela noite. Gritos de gozo, mordidas, pêlos melados da porra do outro. Disse a ele que conhecia o gosto. Quando me permitem descer a colina, as pessoas olham com suspeita minha cabeça raspada: as cicatrizes expostas denunciam que estive lá. Não há como escondê-las, as marcas de Obaluaê. Por ter estado lá, quem sabe, um Quase Encontro merece punição? Me explica, que às vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo.

VI. LINDA

Como um gatinho estendido ao sol, as pernas cruzadas, curvei para dentro os ombros, abrindo lentamente os braços. O movimento brotava das omoplatas para descer pelos ombros, atingindo primeiro os antebraços, depois os cotovelos, até chegar aos pulsos, e então escorregar pelas mãos, avançar sobre um por um dos doze dedos, saindo pelas pontas jatos de luz. Das minhas unhas jorravam raios iluminados pelas paredes da cozinha, orientados pela canção de Ísis. Refletidos nas paredes, voltavam a iluminar o rosto dos outros, fachos de luz que eu conduzia para destacar as pálpebras fechadas de Marília, os cabelos de Ricardo, os olhos de Virgínia, azul, dourado. Junto com meus movimentos, a voz de Ísis silenciava os cães e o terror solto em volta da casa, à procura de qualquer coisa como uma gota de sol caída no centro da cozinha suja. Meus movimentos e a voz dela limpavam o lixo da cozinha. E eu os queria assim, todos concentrados unicamente em arrancar beleza do espinho cravado naquele momento escuro que começara a se instalar dentro da casa.

Como bailarina de circo, uma das pernas equilibrada no fio do arame, a outra alongada no ar, as mãos inesperadamente donas do poder de iluminar as coisas, as pessoas. Não sei precisar o momento em que o fio tremeu, abalando meu corpo inteiro, e o poder fugiu. De repente precisei me movimentar mais rápido, para não cair no espaço vazio sem rede, me arrebentando sobre os cacos coloridos espalhados no chão. Os gestos brotavam agora de todos os membros, já não era um gatinho novo ao sol da manhã, mas um animal ferido contraindo-se entre a dor das feridas e a tentativa de manter um equilíbrio qualquer ou captar um sopro capaz de evitar o desabamento da morte, da loucura e do ódio sobre cada uma das nossas cabeças. Ísis parou de cantar, imune a meu poder que retornava, embora eu já não soubesse se com ele mobilizasse luz ou treva. Mas dominava ainda outros, que acompanhavam minha fúria batendo palmas violentamente. Suada, contorcida, eu não consegui parar. Enquanto Ísis procurava alguma coisa pelos armários, um a um eles levantaram-se para dançar comigo.

Júlio apagou a luz. No escuro, não nos importávamos de pisar nos cacos, procurando pelo espaço os membros suados dos outros. Uma língua molhada quem sabe a de Martha, entrou pela minha boca, ao mesmo tempo e que eu sentia os pêlos molhados de um peito de homem, talvez o de Pedro, colado às minhas costas. Eram da bacia que os movimentos surgiam, subindo pelo ventre, eriçando os bicos de meus peitos para alcançar o pescoço que eu jogava para trás, afastando da testa os cabelos suados. Preciso de um peso de homem sobre meu corpo, preciso de um membro duro de homem para umedecer em minhas entranhas esse vazio áspero que me faz sempre dançar e dançar, como possuída por alguma força estranha que reage sem cessar à imobilidade da morte. E, no entanto, toda a ferocidade que eu provocava sem querer continuava sendo beleza e equilíbrio, porque talvez nada mais nos restasse naquela casa cercada por cachorros loucos senão amar uns aos outros. Mesmo como animais. Da selvageria, então, em vez da doçura, arrancaríamos nossa gota dourada de sol. Deitada na mesa, coxas escancaradas, puxei Pedro sobre mim.

Como uma balança desequilibrada que pende de repente para um dos lados, Ricardo acendeu a luz. Vi primeiro Ísis, os enormes seios nus derramados sobre uma caixa vazia de bombons, a mão estendida para mim. O coração de Pedro batia forte contra o meu. Voltei a ouvir os sons do piano no disco que eu colocara na sala e não sei por que, olhando o chão repleto de cacos de louça coloridos, pedaços sujos de chocolate, gotas de sangue, peças suadas de roupa, percebi que a noite tinha descido completamente. Um cão uivou longe. Entre os bicos dos meus seios e os pêlos do peito de Pedro, uni cuidadosamente as pontas dos dez dedos, uma das mãos contra a outra. Como se circundasse uma delicada esfera de cristal. Como se procurasse, de alguma forma intensa e inútil, recuperar certa especie de equilíbrio ou beleza para sempre perdidos.