quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Sétimo fragmento da décima terceira voz

A pedra morna de sol sob as minhas costas. Os garis limpam os restos da feira. Encosto a cabeça no tronco da árvore. Fecho os olhos, ofuscado pelo excesso de luz. Difícil conciliar a manhã de fora com a treva de dentro. Respirar é uma oração que nada pede, Obá humilde. Continua, já ultrapassaste o meio, não tens mais o que temer. Repara, agora é como o centro escuro da noite. O próximo movimento só pode ser em direção à luz. Ele brilhava, ele era claro, ele era feito de sol. Todos queriam não estar ali. Não se deve, não se pode querer estar em outro lugar além do que se está. Eles desejam coisas que não existem. Eles não conhecem a paixão, nem tu. A tudo isso eu chamo tontura, não prazer. Evita a vertigem. Resseca, desbasta o limite é a nudez do osso. Além dele, se avançares, há somente poeira. Mas cuidado, exigem-se os dentes fortes que Nanã perdeu. Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real. Como te atreves a supor que carregas O Facho de Luz? Sei bem quanto brilha, mas te digo que serias incapaz de vencer as Iansãs do vento. 

VII. RICARDO

Não sei se tive medo - dos cães, da noite, dos corpos - ou se apenas queria que me vissem. De alguma forma, pensava confuso que jogando luz sobre a cozinha outra vez nos olharíamos nos olhos. Parecia importante saber se a mão no meu cabelo pertencia a Pedro ou a Virgínia, se a boca contra a minha era de Júlio ou Martha e assim, pensei, também os outros. Para que soubéssemos, acho, da exata medida e intenção de cada toque em cada membro, foi que acendi a luz. Como um filme que de repente pára, todos me olharam imobilizados no que faziam. Eu era o centro móvel do que começaria a acontecer no próximo momento. Marília olhou como se procurasse censura nos meus olhos. Mas eu queria festa, não dor. Caminhei para o armário, apanhei três garrafas de vinho tinto, coloquei-as sobre a mesa. Pedro abriu-as, enquanto Martha dispunha os cálices. O disco parou. Em silêncio, eu à cabeceira da mesa, brindamos a qualquer coisa que ainda não viera. À nossa sobrevivência, quem sabe.

Mas embora o vinho, a festa tinha acabado. E não nos olhávamos nos olhos, apesar da luz. Os cães já não uivavam. Não havia mais a dança de Linda nem a canção de Ísis. O silêncio tornou-se tão denso que cada movimento precisava ser feito devagar, como se o ar pesasse à nossa volta, dificultando os gestos. Quis pensar então na minha vida antiga, mesmo uma nem muito remota, que fosse pelo menos até pouco antes do pôr-do-sol quando, ao voltar para casa, do caminho cercado de hibiscos que liga o portão de entrada à varanda, enxerguei Virgínia ajustando a luneta para observar Vênus. Não consegui lembrar mais nada. Eu não tinha passado. Acho que pensei que não tivesse talvez também futuro. Como no centro de um palco, na cabeceira da mesa, a luz batendo direto no meu rosto, o braço esquerdo caído ao longo do corpo, o direito segurando um cálice de vinho. Alonguei lentamente a coluna. Então olhei-os.

Éramos nove eremitas. Na cabeceira oposta da mesa, Raul olhava como se me tivesse transferido em segredo, em silêncio, o centro de algum poder que eu sequer adivinhava o valor. Eu preparei o chá, ele disse, você preparou o vinho: um outro e novo movimento se inicia agora. Desejei que alguém colocasse outros disco na sala, que os cães recomeçassem a uivar, que caísse de repente uma dessas tempestades violentas de verão. Nada acontecia. A tática solenidade disposta entre nós começou a pesar tanto que, como um professor ou um psicanalista, tive o impulso de olhar o relógio para dizer qualquer coisa como bem, por hoje é só. Eu não conseguia dizer nada. Desviei meus olhos dos de Raul para fixá-los num quadro pouco acima da cabeça dele: a Santa Ceia desbotada de onde Tiago Menor parecia olhar direto nos meus olhos. Outra vez me voltou à memória o caminho de hibiscos. Tirei do bolso o quadrado de papel vegetal. Ergui-o como uma hóstia, as duas mãos unidas, até que a luz batesse justamente sobre ele. Através do papel, os grãos miúdos brilhavam feito pequenos sóis.

Uma corrente de energia percorreu os outros. Júlio apressou-se a trazer o espelho. Pedro tirou da cintura o punhal marroquino. Marília acendeu a vela. Depositei na mesa o copo de vinho. Com a mão direita, abri devagar o papel sobre a palma da mão esquerda. Antes que alguém pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, soprei fortemente o pó. Flutuou por instantes no ar, depois espalhou-se sobre os móveis, pelos cantos, pelas quinas. Dissipar a névoa, sim, talvez fosse esse o meu sentido. Mas se era realmente assim, não compreendia por que, como a noite então, uma grande tristeza, neblina, começou a descer sobre mim. Eu não tinha passado algum antes do caminho de hibiscos, os cães recomeçaram a uivar, eu só queria iluminá-los, a cozinha estava muito suja, não havia futuro. Minha vida doía fundo sangrada sem saída. Tudo que eu precisava era o sol quente da manhã seguinte que não viria, aquecendo minha cabeça confusa. Cobri o rosto com as mãos e comecei a chorar.  

Sexto fragmento da décima terceira voz

Ele sabia dançar. Era bonito dançando. Mandavam sempre que repetíssemos, talvez para que os outros aprendessem a beleza. Ou mais cruéis: para que ele mesmo percebesse como eu já não conseguia dissimular o desejo de tocá-lo. Um dia, toquei. Mas sem cuidado. Como numa pirueta errada. Sem sentir, você calcula mal alguma coisa no passo e, em vez de vôo, vem a queda. O ridículo é que só no chão você percebe que caiu. Então é tarde demais. Mas havia um esboço de prazer quando nos tocávamos, na dança. E o próprio prazer, aquela noite. Gritos de gozo, mordidas, pêlos melados da porra do outro. Disse a ele que conhecia o gosto. Quando me permitem descer a colina, as pessoas olham com suspeita minha cabeça raspada: as cicatrizes expostas denunciam que estive lá. Não há como escondê-las, as marcas de Obaluaê. Por ter estado lá, quem sabe, um Quase Encontro merece punição? Me explica, que às vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo.

VI. LINDA

Como um gatinho estendido ao sol, as pernas cruzadas, curvei para dentro os ombros, abrindo lentamente os braços. O movimento brotava das omoplatas para descer pelos ombros, atingindo primeiro os antebraços, depois os cotovelos, até chegar aos pulsos, e então escorregar pelas mãos, avançar sobre um por um dos doze dedos, saindo pelas pontas jatos de luz. Das minhas unhas jorravam raios iluminados pelas paredes da cozinha, orientados pela canção de Ísis. Refletidos nas paredes, voltavam a iluminar o rosto dos outros, fachos de luz que eu conduzia para destacar as pálpebras fechadas de Marília, os cabelos de Ricardo, os olhos de Virgínia, azul, dourado. Junto com meus movimentos, a voz de Ísis silenciava os cães e o terror solto em volta da casa, à procura de qualquer coisa como uma gota de sol caída no centro da cozinha suja. Meus movimentos e a voz dela limpavam o lixo da cozinha. E eu os queria assim, todos concentrados unicamente em arrancar beleza do espinho cravado naquele momento escuro que começara a se instalar dentro da casa.

Como bailarina de circo, uma das pernas equilibrada no fio do arame, a outra alongada no ar, as mãos inesperadamente donas do poder de iluminar as coisas, as pessoas. Não sei precisar o momento em que o fio tremeu, abalando meu corpo inteiro, e o poder fugiu. De repente precisei me movimentar mais rápido, para não cair no espaço vazio sem rede, me arrebentando sobre os cacos coloridos espalhados no chão. Os gestos brotavam agora de todos os membros, já não era um gatinho novo ao sol da manhã, mas um animal ferido contraindo-se entre a dor das feridas e a tentativa de manter um equilíbrio qualquer ou captar um sopro capaz de evitar o desabamento da morte, da loucura e do ódio sobre cada uma das nossas cabeças. Ísis parou de cantar, imune a meu poder que retornava, embora eu já não soubesse se com ele mobilizasse luz ou treva. Mas dominava ainda outros, que acompanhavam minha fúria batendo palmas violentamente. Suada, contorcida, eu não consegui parar. Enquanto Ísis procurava alguma coisa pelos armários, um a um eles levantaram-se para dançar comigo.

Júlio apagou a luz. No escuro, não nos importávamos de pisar nos cacos, procurando pelo espaço os membros suados dos outros. Uma língua molhada quem sabe a de Martha, entrou pela minha boca, ao mesmo tempo e que eu sentia os pêlos molhados de um peito de homem, talvez o de Pedro, colado às minhas costas. Eram da bacia que os movimentos surgiam, subindo pelo ventre, eriçando os bicos de meus peitos para alcançar o pescoço que eu jogava para trás, afastando da testa os cabelos suados. Preciso de um peso de homem sobre meu corpo, preciso de um membro duro de homem para umedecer em minhas entranhas esse vazio áspero que me faz sempre dançar e dançar, como possuída por alguma força estranha que reage sem cessar à imobilidade da morte. E, no entanto, toda a ferocidade que eu provocava sem querer continuava sendo beleza e equilíbrio, porque talvez nada mais nos restasse naquela casa cercada por cachorros loucos senão amar uns aos outros. Mesmo como animais. Da selvageria, então, em vez da doçura, arrancaríamos nossa gota dourada de sol. Deitada na mesa, coxas escancaradas, puxei Pedro sobre mim.

Como uma balança desequilibrada que pende de repente para um dos lados, Ricardo acendeu a luz. Vi primeiro Ísis, os enormes seios nus derramados sobre uma caixa vazia de bombons, a mão estendida para mim. O coração de Pedro batia forte contra o meu. Voltei a ouvir os sons do piano no disco que eu colocara na sala e não sei por que, olhando o chão repleto de cacos de louça coloridos, pedaços sujos de chocolate, gotas de sangue, peças suadas de roupa, percebi que a noite tinha descido completamente. Um cão uivou longe. Entre os bicos dos meus seios e os pêlos do peito de Pedro, uni cuidadosamente as pontas dos dez dedos, uma das mãos contra a outra. Como se circundasse uma delicada esfera de cristal. Como se procurasse, de alguma forma intensa e inútil, recuperar certa especie de equilíbrio ou beleza para sempre perdidos.   

domingo, 18 de novembro de 2012

Quinto fragmento da décima terceira voz

Tanto sangue dentro do meu derramado coração, era assim? Talvez fosse, mas não se trata disso. Lamúria insuportável, o corpo, esse que se arrasta com suas carências. Não precisa pressa, calma lá. A porteira está fechada para quem quiser passar, era isso? Já te disse que não responderei. Quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doía. Continua doendo. Ainda não acabou. Passa, passará. Ás vezes ficávamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o seu destino. Marte, Ossanha gostava das folhas, das pedras. De peixes também. Ele me insinuou que as pedras eram vivas. Desde então eu as mantenho imersas em copos cheios d'água, para que cresçam. São muitas. Agora espero outro. Que, como ele, não será mais do que Uma Nova Metáfora do Encontro. Por enquanto espio as pombas nas cumeeiras. Quando não há música, canto. Quando paro de cantar, como maçãs. Os talos estão jogados pelo quarto, entro os lençóis. Apodrecem como meus sentimentos, jogados na Via-Láctea. Esfrego a lâmpada, mas o gênio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela até me levarem para a mesa de choques. 

V. ÍSIS

Fiquei olhando os bombons caídos no chão, misturados aos cacos coloridos. Martha e Marília repetiam tanto que precisávamos economizar que me curvei para apanhá-los. Júlio esbarrou em mim, cravei um dos cacos na palma da mão esquerda. Quando consegui arrancá-lo percebi que era de um azul muito claro, cor do céu nas tardes de verão. Lambi o sangue que não estancava manchando os bombons, os outros cacos. Ia enxugar o sangue na barra da saia quando vi o pano branco no chão, mas só depois de tê-lo enrolado nos dedos é que Marília gritou e percebi que era o seu bordado. Aquele inacabado, dos ramos de trigo, dos quatro cantos. Tarde demais, pensei. E sem querer pensei junto que, com as manchas de sangue, o trigo pareceria ter brotado num campo de papoulas. Lembrei em seguida das papoulas que Linda e eu costumávamos comprar no final da primavera. Desejei que hoje fosse outra vez como uma manhã de novembro, verão novo no ar, para que pudéssemos colocá-las, sobretudo as vermelhas, as papoulas por todos os cantos da casa, em vasos brancos.

Tive vontade de chorar quando pensei que o verão estava quase no fim, tive pena de mim mesma assim gorda, inícios de março, os cachorros loucos em volta da casa, jogada ali no chão da cozinha entre bombons esmagados, tábuas, pregos, cacos coloridos, sangue, Marcelo e Anaís trancados nos quartos. Arthur no banheiro, Marília muito pálida à minha frente, braços cruzados sobre o peito, olhos fixos no pano que o sangue de minha mão encharcava cada vez mais. Ai o trigo, as papoulas, o bordado.

Para não chorar, por ter pensado na noite de março descendo clara sobre os telhados, pelos bombons esmagados, principalmente por meu dedo, acho, para calar a fome de açúcar no fundo da garganta, foi que comecei a cantar. Devia estar patética e porca e triste jogada pelo chão, mas como se aprovasse o que eu ainda não começara a fazer, Linda sorriu quando abri a boca. Sem que eu escolhesse a canção foi nascendo   summertime sim eu repeti summertime and the living is easy. A voz a princípio fraca, desafinada, perseguindo uma melodia que escorregava entre os acordes repetidos do piano vindos da sala, mas aos poucos mais forte, nítida, para meu próprio espanto fish are jumping and the cotton is high sufocando todos os outros sons. Pouco a pouco, Marília, Raul, Júlio, Linda, Ricardo, Pedro, Martha, Virgínia sentaram-se à minha volta enquanto a noite descia, e quem sabe para tranquilizá-los eu repetia e repetia one os these mornings e Marília fechou os olhos I will gonna rise up singing e Raul sorriu you're gonna spread e Júlio apagou o cigarro your wings e Ricardo distendeu os músculos do rosto and you'll take to the sky e Pedro fechou o livro but till that morning e Martha tirou os óculos there's nothing can harm you e Virgínia olhou para cima como se visse o céu with your mammy and daddy standing by e Linda então abriu devagarinho os braços começando a dançar enquanto todos batiam palmas ritmadamente e eu retomava a primeira parte da letra e todos cantávamos juntos tão alto e claro summertime summertime summertime tão completamente confiantes na manhã de sol próxima que não havia mais cães soltos nem xícaras quebradas ou bombons esmagados pelo chão.

Minha voz era maior que eu e mais forte que todos os demônios soltos pela casa. Para manter eterno o verão atrás da janela, eu cantaria até o amanhecer, cantaria cada vez mais alto até que Marcelo, Anaís e Arthur viessem se reunir a nós como antigamente e como antigamente Linda me abraçaria entrelaçando papoulas douradas nos meus cabelos, pedindo que cantasse mais. Como se estivesse grávida de um tempo novo, eu cantava. Mas tudo mudou. Linda começou a girar cada vez mais depressa. O que costumava ser doce em sua dança foi-se transformando numa espécie de fúria que fazia os outros baterem palmas cada vez mais rapidamente até que, dissociados, havia quatro planos distintos, sonoros, dentro da cozinha. Os uivos dos cães, o piano na sala, os movimentos de Linda e minha canção cada vez mais esfarrapada. Comecei a cantar ais baixo. Até calar. E voltou a fome de açúcar. O sangue escorria da palma da mão. Levantei com dificuldade para procurar nos armários fechados outra caixa de bombons. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Quarto fragmento da décima terceira voz

Me perdoa, não sei se conseguirei. Disse a ela, é necessário o escuro porque dele brota luz. Como uma larva no interior visguento da crisálida, sem supor que a borboleta será seu próximo momento. Tão bíblico, ai, tão edificante. Toma cuidado, senão daqui a pouco escreverás que viste uma pombinha branca cruzando mansamente os céus, talvez uses até o plural (não te atreverias a dizer 'firmamento', não?), e era sexta-feira, dirias, dia de Oxalá. Foi exatamente o que vi, mas esquece. Tudo isso é um engano. Tenho vontade de trazê-la para cá, para cima do morro em Santa Teresa. Ela não suportaria, não suporta estar desperta e ter emoções. O ar é muito puro lá, chega a doer nos pulmões, eu disse quando ele espatifou as doze xícaras. Nenhum de nós poderia voltar atrás. Nem avançar ou parar de cantar. Eu era o décimo terceiro. E estava mudo. Tudo isso começou faz tanto tempo. Obliquidades, transparências. Reflexos sinuosos, ninguém compreenderia. Não estás sofrendo. Estás ausente da dor, tudo é branco. A escolha foi tua. Tem um preço: este.

IV. ARTHUR

Gosto do cheiro do corpo dela. Ao entardecer, quando se banha, deixando a pele libertar aquele perfume como o da terra molhada após as primeiras gotas de chuva. Gosto de seu rosto sem pintura alguma, do ar severo, das marcas sob os olhos, os cabelos escuros, partidos ao meio em bandós, presos na nuca por uma fita áspera, juta, sarja. Se mais tarde alguém me perguntasse por que, só poderia responder que quero Marília - soube disso pela primeira vez no momento exato em que a vi levantar-se da mesa com o bordado nas mãos. Como se a pata de um desses cães que andam lá fora se abatesse sobre a minha cabeça e entre a dor, a tontura e quem sabe também algum medo localizasse um fogo me incendiando por dentro. Sem soltar as tábuas, o martelo e os pregos, segui atrás dela pelo corredor, desviando-me do movimento que Linda fez com os braços para tentar me impedir. Não, ninguém perguntaria nada. Batem-se todos pela casa fechada, mais loucos que os cães lá fora. Sei ainda que somente eu - cabeça, princípio - mantenho qualquer coisa como uma lucidez, poderosa o suficiente para que nenhum deles se atreva a cobrar o que fiz.

Um bofetada em pleno rosto vê-la ali sentada, à beira daquela ridícula Pietà, a cabeça de Raul prestes a desabar em seu colo. Não decidi nada. Como se não fosse eu, ouvi o ruído das tábuas caindo nos ladrilhos, um momento depois de já ter feito o gesto. Sem largar o martelo, torci o braço de Marília até erguê-la do chão. O pano bordado escorregou sobre o rosto de Raul, como um desses lenços que cobrem a face dos cadáveres. Quase morto assim, face encoberta: matá-lo seria apenas consumar o que já estava feito. Com o braço livre, Marília interrompeu meu impulso no instante de baixar o martelo com força sobre os ossos dele. As unhas curtas, cheias de terra, cravadas no meu braço, um pedido nos olhos escuros. Eu disse que sim, que o pouparia se ela fugisse comigo. Pela clarabóia no teto do banheiro, se empilhar-mos alguns móveis poderemos abri-la para alcançar o telhado, de lá saltar para um dos galhos da figueira ao lado da casa e então, como macacos, através das árvores, chegar até o rio, passando para o outro lado. Os cães hidrófobos não se atreverão a cruzar aquela água.

Pedi todas essas coisas, cercando-a em volta da mesa. Percebi que tentava proteger alguma coisa com o corpo. Agora consigo dar certa ordem a tudo que ia acontecendo. Lembro da grande mesa de madeira e do vestido preto de Marília encobrindo algo sobre a mesa. Não quero fugir, ele disse. Não daqui, não com você. Foi quando tentou alcançar a porta que liga a cozinha ao corredor e o corredor à sala que vi o bule branco cercado por doze xícaras coloridas. De repente soube que o martelo permanecera entre meus dedos exatamente para esse próximo gesto. Muito tempo antes, ele já estava pronto. Creio que foi nesse momento que Marília fugiu.

Os cães uivavam, cada vez mais próximos. Espatifei primeiro o bule, depois, uma a uma as xícaras coloridas. Lembro dos cacos roxos de uma delas e de como, por alguma razão obscura, absurda, tentei proteger de meus próprios golpes a xícara vermelha. Mas meu gesto não respondia à minha vontade. Guardei apenas um dos cacos, que trouxe comigo para o banheiro.

Os outros começaram a correr para a cozinha. Ao passar, esbarrei no corpo redondo de Ísis. Martha falou alguma coisa que não entendi. Acho que escutei Raul repetir chorando que agora nada mais podia ser feito, que estávamos perdidos. Talvez estejam, eles. Não eu. Quando meu coração parar de bater tão forte, colocarei a cadeira sobre a privada, forçarei a clarabóia com o martelo para alcançar o telhado, a figueira, o rio, o outro lado. Talvez tenha o cuidado maligno de abrir por dentro a porta do banheiro, antes de fugir. Não seria impossível, nem muito difícil, que um dos cães alcançasse o telhado. Ele gostaria de atravessar o corredor rangendo os dentes, a espuma negra na boca, para encontrá-los como se nada tivesse acontecido, reunidos feito um patético simulacro de família na sala de jantar. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Terceiro fragmento da décima terceira voz

Naquele tempo a escada ainda não era amarela. Ela me ajudava. Quando as contrações se tornavam insuportáveis, eu descia pela escada que ainda não era amarela para repetir o disco. Isso me acalmava, molhar plantas, abrir livros ao acaso. Foi numa dessas vezes que encontrei os versos falando da maldição. Só então entendi que aquele era o momento exato do abandono dos Deuses. Quando Medéia perde os poderes por amor a Jasão, Exu se ausenta. Mas tudo isso é necessário? Tudo isso o quê? As explicações, as memórias, os mitos. Não sei, não sei, não consigo de outro jeito. Continuo esperando certa nitidez vinda de fora. Por enquanto, nesta outra cidade, ouço e vejo apenas o vento misturando terras, pólens, papéis, sementes, miasmas, folhas e histórias. Sopra mais forte na minha esquina sobre o abismo. Curva das Tormentas, eu a chamei. A enfermeira disse que por isso estão todos hoje mais agitados. Recuso a injeção para esquecer. Quero voar com o vento para o centro da Curva das Tormentas. Me ajuda, pai, meu pai - meu pai Ogum, senhor das estradas.

III. MARÍLIA

Eu a vi atravessar rápido o corredor. Parecia chorar. Nunca sabemos ao certo quando Anaís chora realmente ou se está apenas um pouco embriagada por seus licores açucarados, pelas drogas que costuma comprar nos dias em que vai à cidade, quase sempre às sextas. Logo depois ouvi os passos pesados de Marcelo saindo da cozinha para bater com força a porta do quarto. Não tive tempo de compreender. De repente havia um excesso de ruídos no ar, aquele disco de piano de que Linda tanto gosta, muito alto, um grito estridente de Ísis, os uivos dos cães, Ricardo parado no meio da sala dizendo que precisávamos fazer alguma coisa, Arthur trancando todas as portas enquanto Júlio caminhava de um lado para outro, fumando sem parar. Na mesa, Pedro, Virgínia, Martha e eu. Martha parecia concentrada fazendo contas na calculadora, anotando números no pequeno bloco, detendo-se às vezes para levantar os óculos redondos que frequentemente escorregam por seu nariz comprido. Virgínia terminava um mapa, traçando riscos retos, azuis ou vermelhos, com quadrados ou triângulos, entre os planetas. Pedro lia. Espiei por cima de seu ombro no momento em que sublinhava uns versos assim: Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento e do mar infecundo e do céu constelado, de todos, estão contíguos às fontes e confins, torturantes e bolorentos, odeiam-nos os deuses.* Eu olhava minhas unhas sujas de terra, sem conseguir estender as mãos para apanhar aquele bordado com ramos de trigo nos quatro cantos, que prometi a Raul terminar hoje.

Estendia as mãos mas, antes de apanhar o pano, via a terra das unhas, então lembrava de Raul, da promessa feita. Acho que de repente fiquei espantada por estar exatamente aqui, entre todas essas pessoas, e devo ter me perguntado vagamente por que tudo em minha vida teria me conduzido para este momento, esta mesa, esses cães uivando lá fora. Não estava preocupada. Tudo que precisávamos era economizar o que restava de comida, cigarros, papel, todas essas coisas. Mas Ísis, comendo bombons sem parar enquanto Júlio fumava e Martha escrevia, parecia não compreender que ignorávamos até quando os cães permaneceriam soltos. Da sensação de estranheza e também de irritação que me veio de todos eles emergiu lenta a figura de Raul. Sabia que preparava o chá das ervas que eu colhera pela manhã, quando Marcelo foi até a cozinha contar a ele. Mas agora, depois de todos os ruídos silenciados, somente o som do piano vibrando no ar, entrecortado pelos uivos dos cães, era como se não nos importássemos com ele. Vou ver Raul, eu disse, e me afastei da mesa com o bordado inacabado nas mãos. No corredor ouvi gemidos vindos do quarto de Anaís, e qualquer coisa como um resfolegar de bicho no quarto de Marcelo. Mas não sabia se não seriam talvez os uivos dos cães, os acordes do piano ou os passos de Júlio.

Raul estava deitado no chão da cozinha. Ele sempre me lembrava um lago. Quieto feito um lago, o branco da roupa destacado contra os ladrilhos escuros. Olhava para o teto, como se não houvesse teto. Apontou o bule branco com as doze xícaras coloridas em volta, pedindo que não deixasse ninguém quebrá-las. Todos correm perigo, disse. Para tranquilizá-lo, sentei ao seu lado. Tremíamos. Pensei em colocar a cabeça dele no meu colo, tomar suas mãos, cantar, fazer carinhos. Mas só consegui ficar muito próxima. De alguma forma, eu queria dizer que tudo aquilo importava pouco. Se soubéssemos controlar a nós mesmos, ao nosso terror, e poupar o gasto exagerado de tudo que tínhamos armazenado, nada aconteceria. Amanhã, depois, dentro de uma semana, um mês, os cães morreriam e poderíamos novamente abrir a casa, sair para o sol. Lera um dia em algum lugar que a raiva corroi aos poucos aos poucos o cérebro deles. Não resistem muito. Queria dizer a Raul que pensasse no tempo que fatalmente passaria, como sempre passa.

O que hoje é drama, sempre, amanhã estará quieto na memória. A casa, ele disse, a casa. Em seguida: o que vai ser de nós? Está tudo bem, tentei dizer, tudo bem. Mas com um martelo na mão Arthur segurou meu braço, forçando-me a levantar. Com tanta violência que o pano bordado caiu sobre o rosto de Raul.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Segundo fragmento da décima terceira voz

Talvez não consiga. Ela acaba de chamar outra vez, pedindo que eu vá. Ela ainda não aprendeu a ser sozinha uma pessoa. Estou esperando por ele, eu disse. Eu não o conheço. Estou contando a história deles, como te disse naquela tarde, quando me convidaste para ir ao cinema. Preciso ter cuidado com seu nascimento, expliquei. Como uma pequena cadela prenhe, são fetos delicados estes. Mas só sabias dançar, pouco entendes dessas histórias inventadas. Requintadas, talvez banais. Espera, está ficando ainda mais obscuro. Tenta de outro jeito. Cronológico, quem sabe? Pode ser, pode ser. Tento: a casa, o rio, o piano, está bem assim? Porque eles queriam nascer, eu voltei na manhã seguinte para a Grande Cidade Vazia. O cimento das avenidas da Grande Cidade Vazia cheio somente de serpentinas, restos de confete, preservativos esporrados, trapos de cetim, flores de plástico, garrafas quebradas, máscaras partidas, pontas de cigarro, latas de cerveja. Fomos avançando pelo meio do lixo da alegria. Era de manhã. Ele me deixou na porta. Então comecei.

II. MARCELO

Acabei de me masturbar. Não lavo as mãos para começar a escrever. O esperma vai manchando a folha, misturado às gotas de suor que escorrem dos pelos de meu peito. Queria saber ficar tranquilo como Linda, que se limitou a sorrir dos cães, aumentando o volume do som para erguer uma das pernas no ar, lentamente, trazendo o braço direito estendido até a frente do tronco. Queria poder espatifar copos no chão da cozinha, feito Arthur. Quem sabe apenas levantar uma das sobrancelhas, feito Martha, pedindo irônica a ele que pelo menos evite quebrar também portas e janelas, para que os cães não entrem na casa. Nada me vem pela harmonia, pela violência ou pela razão. Com sexo é que sinto.

Decidi que me masturbaria no momento em que Júlio entrou correndo para avisar que alguém havia soltado os cães. Poderia ter procurado Anaís, que sempre deixa de lado suas cartas, seus búzios, pedras e dragões para me abrir as pernas. Um pouco distraída, às vezes meio bêbada, como se não fosse eu, como se pouco importasse, tira sem pressa minha roupa, passa as mãos nas minhas costas, fecha os olhos, às vezes lambe meu pau, escancara as coxas para que eu a penetre com vontade cada vez maior de machucá-la, de fazê-la torcer-se e gritar de dor no meio do prazer. Nunca grita. Apenas suspira, não sei se gozo ou desgosto, quando ejaculo e volta a fumar, a beber, a preparar feitiços, a cantar canções vadias. Talvez por tudo isso, também porque sabia de Anaís atrás de mim, tenha corrido à cozinha para contar a Raul.

Sentado num banco, quase no escuro, ele estava debruçado sobre a mesa como se escolhesse feijões. Parecia rezar, a mão direita pousada sobre uma dessas esquisitas xícaras coloridas que Martha comprou na cidade. Antes de acender a luz, por cima de seu ombro, por baixo da camisa desbotada, eu podia ver um pedaço de carne tão branca que quase brilhava na penumbra. Quis então encostar nele, para que não gritasse, para que sentisse como uma proteção o calor do meu corpo colado às suas costas. Depois, enquanto deixasse a cabeça tombar para trás, apoiando-se contra minha barriga, eu faria com que minha mão invadisse o pano fino para beliscar-lhe o mamilo até que gemesse baixinho, repetindo meu nome. E só mais tarde, talvez, contaria dos cães, quando já estivéssemos inteiramente nus, enrolados um no outro sobre os ladrilhos frios. Tudo estava preparado. O que aconteceria já estava desenhado no ar da cozinha, bastava que eu fizesse o primeiro gesto, acompanhando o esboço de um desenho pronto. Foi quando uma voz que me pareceu a de Ísis gritou ao longe e, sem planejar, meu dedo apertou o botão da luz. Coloquei a mão no ombro dele. Apertei forte. E repeti exatamente o que Júlio me dissera há pouco: soltaram os cachorros loucos.

Não queria assustá-lo. Mas Raul ergueu-se brusco, derrubando o banco, olhando para mim como se não acreditasse. Com aquela luz dura derramada sobre a cara dele, eu via suas pupilas crescendo para invadir o azul desbotado da íris. Talvez porque meus olhos estivessem acostumados à sombra, como num desses truques de parque de diversões onde mulheres se transformam pouco a pouco em feras, de repente vi nossos doze rostos, um a um, sobrepondo-se ao rosto dele, inclusive o meu. Quando seus ossos um tanto arredondados ganharam os contornos vagos do rostos de Anaís, estendi a mão e puxei-o para mim. Tinha cheiro de ervas verdes. O cheiro de ervas verdes do corpo de Raul misturou-se ao cheiro de suor do meu próprio corpo. Eu tinha estado o dia inteiro na horta, sem camisa, embaixo do sol. Eu trazia no bolso o primeiro tomate maduro. Com uma das mãos, forcei meu amigo a ficar de frente para mim, muito próximo. Com a outra, tirei do bolso o tomate maduro. Ele me olhava sem compreender. Ouvi um dos cães uivando, perto do poço, pensei, e antes que o uivo terminasse e o outro cão começasse então a uivar, entre talvez o primeiro e o segundo uivos mordi muitas vezes a boca dele, interrompendo-me apenas para repetir que estávamos perdidos.

Então senti uma presença macia às nossas costas. Me voltei rápido, ainda a tempo de perceber as fitas das sandálias de Anaís afastando-se leves para não serem vistas. Empurrei Raul contra a mesa. Corri para o quarto. Foi tudo sôfrego, urgente. Tentei me concentrar somente em um corpo, um rosto, um sexo, mas os doze sobrepunham-se, inclusive o meu, sem ordem, no ritmo do gesto sem controle. Agora sinto os pelos melados entre as coxas, na barriga, o leite branco no umbigo. Provo esse meu gosto espesso, adocicado. Depois o misturo - com nojo, com alegria, com fome também - aos grãos maduros do tomate que acabo de morder.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Primeiro fragmento da décima terceira voz

O tom, o problema é o tom. A tua mão está débil. Parece que não ousas. Espera um pouco, certa paciência. Quem sabe se eu explicasse como me veio, ajudaria? Mas ajudaria a quem, a que? Não me pergunta ainda, só depois talvez quase saberei. É que o tom, eu te falava do tom. Sei, mas lá o tom, maldição, era exatamente esse. Mas assim... diluído? Assim contido? Espera: havia o ria, depois o mato. Foi entre o rio e o mato que me veio. Da casa chegavam uns acordes obsessivos de piano. E da memória, juntos, me brotaram uns versos falando nos cães. Não éramos doze, aquelas pessoas não me interessavam. Eu não as amaria, elas nunca me amariam, a não ser estonteadamente, por levezas, distrações. Eram outras. Era carnaval, pleno carnaval. Eu precisava voltar, elas queriam nascer, eu não as conhecia. Sabia apenas que estavam cercadas, que eram doze, que havia um rio, um mato, um piano tocando sem parar dentro da casa branca. No início da noite, no fim do verão.

I. RAUL

Alecrim, artemísia, absinto, boldo, manjericão, verbena, camomila: eu estava na cozinha fazendo chá de ervas do campo quando soltaram os cachorros loucos. Gostava de misturá-las assim, as ervas, um pouco ao acaso, deixando a água esquentar enquanto as macerava devagar no pote de cerâmica. Tinha começado a noitecer, mas ninguém lembrara ainda de acender as luzes. Talvez porque ficasse tudo mais calmo, mais bonito, quase perfeito: aquela meia penumbra avermelhada, o som do piano vindo da sala, as vozes caladas, as ervas verdes sobre a madeira da mesa. Agora, horas depois, minhas mãos continuam a guardar o cheiro fresco do capim-cidró que Marília colheu pela manhã tomando cuidado para que a lâmina afiada das folhas não lhe cortasse os dedos. Se ficar bem atento, conseguirei localizar sob as unhas remotos vestígios do perfume da hortelã, do funcho, misturados ao cheiro ardido da arruda no galhinho colocado atrás da orelha para afugentar maus espíritos.

Rindo de exorcismos, galhos, pedras, velas, incensos: os maus espíritos estão soltos, imunes aos axés, e não consigo ficar atento a mais nada além dos passos e dos uivos dos cães rondando a casa. A todo instante lembro de quando ainda estava tudo em aparente paz: as ervas sobre a mesa, a chaleira de ferro no fogo, o bule esmaltado de branco com as doze xícaras de cores diferentes dispostas em volta. Eu acompanhava com a cabeça a música vinda da sala, ao mesmo tempo em que esmagava as ervas para jogá-las dentro do bule. Esperando a água chiar, determinava com cuidado, e para sempre, a cor da xícara de cada um de nós, colocando-as em círculo ao redor do bule.
Assim:
Escolhi a vermelha para Arthur, que dá ordens, prega pregos, corta fios e sem parar faz coisas pela casa. Separei a azul-celeste para Ísis, azul no tom exato de sua voz aguda quando canta, cristal retinindo na luz. Determinei que a verde mais clara pertenceria a Júlio, que se enreda em palavras, movimentos, e me parece - pelo menos agora, em plena noite - que o movimento tem exatamente essa cor, sobretudo às três horas das tardes de sol quente. Hesitei um pouco até encontrar minha própria cor, mas acabei escolhendo o branco, não só porque assim me visto sempre, mas também porque é meu ofício fazer coisas brancas, preparar os chás, assar os pães, lavar a louça. Para Ricardo, cujos cabelos claros às vezes brilham, ouro, com uma inspiração separei certeiro a amarela. Não tive dúvidas ao destinar a Martha, que tira a poeira da casa e lava o chão, a xícara verde-escuro. Para Linda, por sua dança de meneios harmoniosos, mansas curvaturas, separei a cor-de-rosa. Quando pensei nas sobrancelhas cerradas de Marcelo, imediatamente tomei a cor de vinho tinto, paixões, intensidades. Pedro, o que nos faz rir quando não está lendo ou caminhando sozinho pelo mato com seus Oxóssis, ficará com a laranja. Por gostar de terra, por nunca usar cores, Marília ganhou marrom. Restavam duas: a azul-marinho, cor do céu noturno, seria de Virgínia, para ajudá-la a decifrar as estrelas quando se embaçarem nas quadraturas. A roxa pertenceria a Anaís. São dessa cor os sonhos e premonições que costuma ter, os licores que prepara, o esmalte de suas unhas, os panos que a cercam.

Como um pequeno zodíaco, doze xícaras em volta do bule. Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu. Abracadabras, shazams. Talvez não fossem necessárias, porque eu estava carregado de amor por nós todos.

Falo banalidades, sei, mas amor é magia, condão, pedra de toque - embora o pressentimento da teia escura se armando sobre nossas cabeças. Seria quem sabe o vermelho vivo do poente, tudo parado, nenhum vento na copa das árvores, a noite chegando do outro lado do mundo, o verão no fim. Sem que eu quisesse, meu pensamento voltava-se involuntariamente para a xícara cor de vinho tinto. As notas do piano enleavam meu corpo em fios sonolentos. Eu deveria rir ou bocejar, suspenso à beira do sono, quando Ísis gritou ao longe, a chaleira ferveu e Marcelo entrou. Ele colocou a mão no meu ombro, apertou forte e disse que tinham soltado os cachorros loucos.

Dodecaedro
Triângulo das águas
Caio Fernando Abreu