sexta-feira, 18 de junho de 2010

O curioso caso de Paranoico Pérez (60)

Paranoico Pérez nunca conseguiu escrever um livro, porque sempre que tinha alguma ideia para um e se dispunha a fazê-lo, Saramago o escrevia antes dele. Paranoico Pérez acabou transtornado. Seu caso é uma variante interessante da síndrome de Bartleby.
- Escute, Pérez, e o livro que estava preparando?
- Não o farei mais. Outra vez Saramago roubou-me a ideia.
Paranoico Pérez é um admirável personagem criado por Antonio de la Mota Ruiz, jovem autor da cidade de Santander que acaba de publicar seu primeiro livro, um volume de contos intitulado Guía de lacónicos, obra que passou um tanto despercebida e que, apesar de ser um conjunto irregular de narrativas, não me arrependo de ter comprado e lido, pois ele me trouxe a surpresa e o ar fresco desse conto protagonizado por Paranoico Pérez e que se chama "Iba siempre delante y era extraño, extrañito", o último do volume e provavelmente o melhor, embora seja um conto um tanto desordenado, ou, caso se prefira, bastante imperfeito; mas não é nada descartável, ao menos para mim, a figura desse curioso bartleby inventado pelo autor.
O conto transcorre inteiramente na Casa de Saúde de Cascais, no manicômio dessa cidade perto de Lisboa. Na primeira cena vemos o narrador, Ramón Ros - um jovem catalão criado em Lisboa -, passeando tranquilamente com o doutor Gama, a quem foi visitar para fazer uma consulta sobre a "psiconeurose intermitente". De repente, chama a atenção de Ramón Ros a súbita aparição, entre os loucos, de um jovem muito alto, imponente, de olhar vivo e arrogante, que a direção da Casa permite andar disfarçado de senador romano.
- É melhor não contrariá-lo e deixar que ande assim. Coitado!
Acredita que está vestido de personagem de um futuro romance - diz o doutor Gama, um tanto enigmático.
Ramón Ros pede que o apresente ao louco.
- Como? Você quer conhecer Paranoico Pérez? - pergunta-lhe o doutor.
Toda a narrativa, toda a história de "Iba siempre delante y era extraño, extrañito", é a transcrição fiel, por parte de Ramón Ros, de tudo o que lhe conta Paranoico Pérez.
"Enfim, ia escrever meu primeiro romance", começa contando-lhe Paranoico, "uma história em que eu estivera trabalhando arduamente e que transcorria inteira, inteirinha, naquele grande convento que há na estrada de Sintra, ia dizer de Sintrita, quando de repente, ante minha absoluta perplexidade, vi um dia, nas vitrinas das livrarias, um livro assinado por um tal de Saramago, um livro intitulado Memorial do convento, ai mãe, mãezinha minha...".
Paranoico Pérez, inclinado a incluir diminutivos em tudo o que conta, vai debulhando sua história, explica como ficou gelado, cheio de temores que logo confirmou quando viu que o romance de Saramago era "espantosamente igual, mas igualzinho", àquele que havia planejado escrever.
"Fiquei surpreso", prossegue Paranoico, "bem surpresinho e sem saber o que pensar de tudo aquilo, até que um dia ouvi alguém dizer que às vezes há históia que nos chegam em forma de voz, uma voz que fala em nosso interior e que não é a nossa, não é a nossazinha. Disse-me que essa era a melhor explicação que pudera encontrar para entender o fato tão insólito que havia ocorrido comigo, disse-me que era muito provável que tudo o que eu havia planejado para meu romance tivesse sido transferido, em forma de voz interior, à mente do senhor Saramago...".
Pelo que vai contando Paranoico Pérez, tomamamos conhecimento de que ele, recuperado da crise que lhe sobreveio após o estranho acontecimento, começou a pensar alegremente em outro romance e planejou com minúcias uma história que seria protagonizada por Ricardo Reis, o heterônimo de Fernando Pessoa. Naturalmente, foi grande a surpresa de Paranoico quando, ao se dispor a redigir sua história, apareceu nas livrarias O ano da morte de Ricardo Reis, o novo romance de Saramago.
"Ia sempre adiante e era estranho, estranhozinho", comenta Paranoico com o narrador, referindo-se, é claro, a Saramago. E pouco depois lhe conta que, quando dois anos mais tarde apareceu A jangada de pedra, ele ficou petrificado diante do novo livro de Saramago, pois se lembrou de que tivera, fazia tão somente uns, um sonho e posteriormente uma ideia muito parecida, parecidinha, com a que de desenrolavanaquele novo livro do escritor que tinha o mau hábito de antecipar-se daquela forma tão insistente e esquisita, tão esquisitinha.
Os amigos de Paranoico começaram a rir dele e a dizer-lhe que procurasse desculpas mais convincentes para justificar por que não escrevia. Seus amigos passaram a chamá-lo de paranoico quando ele os acusou de dar informações a Saramago. "Nnunca mais vou lhes contar nenhum dos planos que eu tenha para escrever um romance. Depois, vocês vão e contam tudo a esse Saramago.", disse-lhes. E eles, é claro, riam.
Um dia, Paranoico, vencendo sua timidez, escreveu uma carta a Saramago em que, depois de se interessar pela tema de seu próximo romance, concluía advertindo-o de que pensava em tomar sérias medidas assassinas se seu livro seguinte transcorresse, como o que ele já havia pensado, na cidade de Lisboa. Quando apareceu História do cerco de Lisboa, o novo romance de Saramago, plantou-se diante da casa deste vestido de senador romano. Em uma das mãos levava uma faixa na qual manifestava sua grande satisfação por ter-se transformado em um personagem vivo daquele que seria o romance seguinte de Saramago. Porque Paranoico, que acabava de imaginar uma história sobre a decadência do Império Romano, estava convencido de que Saramago já lhe havia roubado a ideia e escrevia sobre o mundo dos senadores daquela Roma agonizante.
Vestido como personagem do futuro romance de Saramago, Paranoico queria apenas demonstrar ao mundo que conhecia perfeitamente o romance secreto que Saramgo estava preparando.
- Já que não me deixa escrever - disse a alguns jornalistas que se interessaram por seu caso -, ao menos que me deixe ser um personagem vivo de seu futuro romance.
"Colocaram-me em um manicômio", contou Paranoico a Ramón Ros, "que se há de fazer? Não acreditam em mim, acreditam em Saramago, que é mais importante. Assim é a vida."
Paranoico comenta isso, e a narrativa começa a chegar ao fim. Cai a noite, diz-nos o narrador. É uma noite única, esplêndida. A lua estava localizada de tal modo sobre os arcos do jardim da Casa de Saúde que bastaria esticar a mão para pegá-la. O narrador põe-se a olhar a lua e acende um cigarro. Os enfermeiros começam a levar Paranoico. Ao longe, fora da Casa de Saúde, ouve-se o latido de um cão. O narrador, sem nenhuma relação - parece-me -, lembra-se daquele rei da Espanha que morreu uivando para a lua.
Portanto, Paranoico revela outro caso de síndrome de Bartleby. Aquela de que sofre o mesmíssimo Saramago.
"Embora não seja vinagtivo", conclui Paranoico, "sinto uma alegria infinita ao ver que, desde que lhe deram o prêmio Nobel, já conta com catorze doutorados honoris causa e ainda o esperam muito mais. Isso o mantém tão ocupado que não escreve mais nada, renunciou à literatura, tornou-se um ágrafo. Fico muito satisfeito de ver que, ao menos, fez-se justiça e souberam castigá-lo...".

Bartleby e companhia
Enrique Vila-Matas

Um comentário:

  1. "Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário"
    José Saramago

    Me lembrei de vc.

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