segunda-feira, 28 de março de 2011

Mentira

Uma vez, enquanto deitadas naquela espécie de cama azul sem pés que usamos - eu, você, todos os seus amigos, os amigos dos seus amigos, as suas ex-namoradas, às vezes alguém da sua família, enfim, todos usamos - para assistir televisão, o meu nariz encaixado no seu pescoço, eu disse a você: "Quando estamos assim eu me sinto em casa". Você me perguntou: "Assim como?"; eu respondi: "Assim: eu, você, meu nariz, seu pescoço".

Essa foi uma das minhas mentiras pra você. E pra mim também; Deus do céu, como eu minto pra mim quando minto pra você. Aquela não era a minha casa, não chegava nem perto da sensação que se tem quando se está em casa, e ainda assim eu disse o que disse. Naquele momento, como nos outros momentos que minto pra você e pra mim, me senti tirando a roupa, sem vontade nem tesão, como se parte de mim me obrigasse a te mostrar todas as minhas imperfeições e você conhecesse a minha parte podre de uma vez. Como se você tivesse a obrigação de assistir àquele meu desnudamento, beijasse todas as minhas feridas e dissesse que me ama, ou me expulsasse num pontapé de olhar que eu nunca mais ia pensar em falar uma babaquice daquelas de novo.

O pior de tudo foi a luz acesa. Consegui enxergar a cara de todos os seus amigos deitados ali com a gente, e os amigos dos seus amigos, e suas ex-namoradas, e sua família, todos os seus conhecidos e, de repente, o porteiro do seu prédio, sua vizinha, sua empregada e, mais de repente ainda, eu vi seu carro parado ali na nossa frente, malvado; seu celular perverso me criticando. Tudo, naquele momento eu estava nua pra todos e tudo. Penso no trauma da sua cachorra e do seu gato que foram obrigados a ver a cena, também sentindo pena de mim.

E por que tudo isso? Pra quê?

Mentir só por mentir. Pra ver se o outro acredita. Pra ver se dá certo. Pra garantir o seu. Pra te dar segurança. E mais um monte de bosta que passa na cabeça de quem só sabe jogar. Foi assim que eu aprendi e foi assim que deu certo. Mas não dessa vez. Olha só, pode ficar tranquila que a mentira não te pegou, não foi convincente o suficiente. Minha capacidade de mentir/persuadir/manipular se esvaiu quando menti pra você pela primeira vez aquela noite, naquele quarto de hotel, há pouco mais de seis meses.

Fica tranquila, garota, só quem acreditou fui eu.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro, 1935