domingo, 2 de janeiro de 2011

A benção de Clarice

Sempre tive o sonho de escrever.
Sempre tive o sonho de fazer qualquer coisa ligada à arte, qualquer coisa que me desse um toque de mistério nas minhas atitudes, nos meus pensamentos, na minha maneira de me vestir, de andar, de comer, de gesticular..
Eu acreditava que a arte transformava as pessoas em loucos-bonitos, em heróis. Ainda acredito que transforme, só que naquela época eu achava bacana morrer de overdose, como Janis Joplin e um monte daquela geração. Hoje eu acho bacana morrer trabalhando, assim, no meio do palco, como Cacilda Becker. E como ela só teve ela, mesmo. Muito mais glorioso.

Essa loucura-bonita, na minha cabeça, me tornaria um pouco mais interessante que as outras mulheres, e também mais interessante que os homens que me rodeavam - nunca fui de me comparar à um gênero só, e sempre fui de me comparar. Sempre fui muito competitiva, com qualquer pessoa, e é com toda a humildade que digo que era uma competitividade boa, porque era competitiva comigo também no mesmo grau que era com os outros. Poucas vezes isso virou doença. Ou, se virou, hoje essa doença foi aceita, e doença aceita deixa de ser doença -.

Nunca tinha conhecido qualquer autor ou mesmo qualquer livro que me fizesse gostar, realmente gostar de ler. Todo mundo, no meu meio, pelo menos, teve um livro na infância que o considerasse o "livro da minha infância". Quase sempre é O Pequeno Príncipe. Bom, eu nunca tive um "livro da minha infância". Me lembro de uma coleção que tinha (linda, por sinal) dos contos de Monteiro Lobato, mas nada que me marcasse tanto assim. E também nunca li O Pequeno Príncipe, até hoje (!), então se você vier com aquela história de que "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" como lição de moral, saiba que eu só vou te responder porque essa história já está batida, e não foi nenhuma raposa que me contou, e sim uma ex-namorada, o que é quase a mesma coisa, dependendo do ponto de vista.

Conheci Clarice Lispector (adoro metonímias!) bem atrasada, aos dezesseis anos. Mas comecei lendo A Hora da Estrela, então tudo bem. De cara me identifiquei com Macabéa, não pelo físico, não pelo sotaque, não pela condição social, não pelo destino, mas sim, pelo vazio. E sim, talvez pelo destino também. Acredito que todo mundo que tenha lido com um pouco mais de sensibilidade, sentiu exatamente a mesma coisa. É isso que mais me inspira neste tipo de dramaturgia, o fato de que mesmo você não tendo aparentemente absolutamente nada a ver com o tal do personagem, você tem tudo a ver com ele. Por causa das palavras, entende? Por causa das frases que as palavras formam, por causa dos períodos que as frases formam, por causa de cada vírgula e cada ponto, por causa da alma presente no texto.

Quando Clarice fala dessa desorientação, desse não-entendimento como pulsão de vida, das limitações do fazer sentido, do abismo.. Eu tenho vontade de viver. Eu digo pra mim mesma: "é isso. A vida é isso, pode continuar." E quando ela oferece sua alegria nas páginas de um jornal, quando diz que amor é, na verdade, a soma das incompreensões, e que a saudade é como a fome, só passa quando se come a presença, eu tenho absoluta certeza de que estou no caminho certo, que como ela mesma diz, é, às vezes, o perder-se.

Pertencimento pelo estranhamento - é essa sua benção!

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