domingo, 25 de abril de 2010

O misterioso caso de miss V.

É um lugar-comum que não há solidão que se compare à de quem se vê sozinho numa multidão; romancistas o repetem; é inegável que comove; e agora, depois do caso de miss V., eu ao menos passei a dar-lhe crédito. Uma história como a dela e a irmã - mas é típico que, ao se escrever sobre elas, um nome pareça instintivamente servir às duas; pois pode-se mencionar de um só fôlego, com efeito, um monte de irmãs assim. Tal havido o açougueiro ou o carteiro ou a mulher do pastor; mas numa cidade altamente civilizada as amabilidades da vida humana se estreitam no menor espaço possível. O açougueiro larga sua carne pela área; e o carteiro enfia sua carta na caixa, sendo sabido que a mulher do pastor já atirou as missivas pastorais pela mesma brecha tão cômoda: todos ele repetem que não têm tempo a perder. Assim, ainda que não se coma a carne, que as cartas fiquem por ler e que os comentários pastorais sejam desobedecidos, ninguém se torna mais sensato; até que chega um dia em que esses funcionários tacitamente concluem que o número 16 ou 23 não precisa mais de atendimento. Em suas rotinas, eles então passam ao largo, e a pobre miss J. ou miss V. fica de fora dessa malha fechada da vida humana; e é deixada por todos e para sempre ao largo.
A facilidade com que um tal destino lhe ocorre sugere que realmente é preciso fazer valer seus direitos para impedir que você mesmo seja mantido à parte; como lhe seria possível vir à vida de novo, se o açougueiro, o carteiro e o guarda decidissem ignorá-lo? É um destino terrível; e acho que neste exato momento vou bater de encontrão numa cadeira; o inquilino de baixo agora sabe que, seja como for, eu estou viva.
Mas, voltando ao misterioso caso de miss V., entenda-se que em sua inicial também se oculta a pessoa de miss Janet V.: nem chega a ser necessário dividir uma letra em duas partes.
Durante uns quinze anos elas andaram circulando por Londres; podia-se encontrá-las em certas salas de visitas ou em galerias de arte e, se você lhe dissesse, "Oh, miss V., como tem passado?", como se estivesse acostumado a encontrá-la todos os dias, ela responderia, "Que dia lindo, não é?", ou "Tem feito muito mau tempo", e então você iria em frente e ela pareceria fundir-se a uma poltrona ou uma cômoda. De qualquer modo, você não pensaria mais nela enquanto ela não desgrudasse do móvel, no curso talvez de um ano, e as mesmas coisas viessem a ser ditas de novo.
Um vínculo de sangue - ou do fluido que porventura circulasse nas veias de miss V. - fez com que meu destino particular fosse dar com ela - ou passar por ela ou dissipá-la, seja lá como puder ser a frase - mais constantemente talvez do que qualquer outra pessoa, até que essa pequena performance se tornou quase um hábito. Nenhuma festa ou concerto ou galeria parecia estar completa se a familiar sombra cinzenta não fizesse parte do todo; e quando, não faz muito tempo, ela cessou de estar sempre no meu caminho, vagamente entendi que havia alguma coisa faltando. Não vou exagerar e dizer que entendi que o que faltava era ela; mas não há insinceridade em usar o termo neutro.
Numa sala apinhada, comecei assim a me ver olhando em torno, num descontentamento inominável; bem, todo mundo parecia estar ali - mas por certo faltava alguma coisa nos móveis, nas cortinas - ou seria uma gravura que tinha sido tirada da parede?
Aí, uma manhã bem cedo, despertando de fato ao raiar do dia, gritei bem alto, Mary V., Mary V.!! Foi a primeira vez, estou certa de que ninguém nunca havia gritado seu nome com tal convicção; em geral ele parecia um epíteto incolor, usado simplesmente para arredondar um período. Mas minha voz não interpelou à minha presença, como eu em parte esperava, a pessoa ou parecença de miss V.: o quarto permanecia obscuro. Meu próprio grito ecoou-me o dia todo no cérebro; até eu ter a certeza de que na esquina de uma rua qualquer eu me encontraria como de costume com ela, dando-me satisfeita ao vê-la sumir ao longe. Contudo ela não apareceu; e creio que fiquei desapontada. De qualquer modo veio-me à cabeça, quando de noite me mantive acordada, o inesperado plano fantástico, a princípio um mero capricho, que aos poucos se tornou sério e perturbador, de que eu iria em pessoa visitar Mary V.
Quão louco e estranho e divertido parecia tal plano, na hora em que eu pensava nele! - seguir os passos da sombra, ver onde é que ela vivia, se é que vivia mesmo, e conversar com ela como se fosse uma pessoa igual ao resto de nós!
Pense só quão singular pareceria tomar um ônibus para ir visitar a sombra de uma campanulácea em Kew Gardens, quando o sol se acha a meio caminho céu abaixo! ou pegar nos pêlos de um dente-de-leão! à meia-noite numa campina de Surrey. No entanto a expedição a que eu me propunha era muito mais fantástica do que qualquer uma dessas; e, enquanto eu me vestia para sair, dei não poucas risadas ao pensar quão substanciais preparativos eram necessários para a minha tarefa. Chapéu e botas para Mary V.! Parecia incrivelmente inadequado.
Por fim cheguei ao apartamento onde ela morava e constatei que a placa na entrada, quando a olhei, indicava ambiguamente - igual ao resto de nós - que ela tanto estava lá quanto fora. À sua porta, bem no último andar do prédio alto, toquei a campanhia e bati, esperei e sondei; ninguém atendia; e eu já começava a me perguntar se as sombras morrem, e como poderiam ser enterradas, quando veio uma criada gentil abrir a porta. Mary V. tinha estado doente por dois meses; morrera ontem de manhã, na mesma hora em que eu gritara seu nome. Nunca mais, assim, hei de encontrar sua sombra.

Virginia Woolf

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